1967. Carta de amor de um alferes para a namorada. Do Paquete Vera Cruz. FLY0063

FLY0063
Carta de amor de um alferes para a namorada. Do Paquete Vera Cruz.

Data
05/08/1967

Referência Arquivística
N.A..
N.A., Coleção Particular, FLY0063, Fólios [1]r-v e [2]r-v

Resumo
O autor escreve à namorada a descrever como foi emocionante a despedida no cais e como o paquete Vera Cruz é espetacular. Pede-lhe também que ela olhe pela sua saúde.

Local
do paquete Vera Cruz

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Autor | Destinatário | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Fl. [1]r
5 de Agosto de 1967

[N]

Estou a escrever-te algures no alto mar onde navego
rumo a África. São quase sete horas da tarde e
estou estendido na minha cama, no camarote que me
foi atribuido. Há seis horas e meia que vamos a andar.
A saída verificou-se eram meio dia e vinte minutos.
Ainda bem que não vieste ao meu embarque. É realmente
um espectáculo impressionante e extraordinariamente chocante!
Tu, [N], no estado em que andas, não aguentavas, era demais para ti. Ainda bem, ainda bem que as coisas se
proporcionaram para não vires. Apesar de ser homem, de
toda a preparação psicológica que fiz, de só ter vindo ao
meu embarque o meu irmão e as minhas primas,
e de aguentar bem coisas deste género, eu não consegui
suster uma lágrima rebelde a culminar a intença
emoção que sentia. Havia gente a chorar como
crianças. Aqueles lenços a acenar, aqueles gritos, etc
etc criaram um ambiente macabro mesmo.
Bolas! Coisa medonha e então com música..!
A minha despedida em casa da minha tia, da minha
querida mãe foi também quase que dramática.
A mãezinha chorava e gritava, não sei como con
segui aguentar. Compreendo a minha mãe, ela
sofre muito com a minha saída, ajuda-a em
tudo o que puderes. O meu irmão também
chorou, realmente o ambiente estava irresistível!

As minhas instalações no barco são óptimas.
Este paquete é formidável. Eu não fazia uma mini
Fl. [1]v
na ideia do que isto era. É autênticamente uma cidade
flutuante. Vou dizer-te algumas coisas, pelas quais podes
já fazer uma ideia disto.

O camarote de onde vou, assim como os outros, têm
três camas, com colchões molaflex, tem quarto de banho
privativo com água quente e fria, telefone, campanhia
ar condicionado, ventoinha, um guarda-fatos,
mesinhas de cabeceira, etc etc. Mas tudo do melhor
e com um luxo extraordinário, um conforto, uma decoração
e um arranjo extraordinário. A comida é óptima, ao
almoço tivemos acepipes à base de "hors d'ouevres", depois
sopa de legumes, depois um prato de peixe cozido com
batatas, depois bife grelhado com batatas fritas, depois
sobremesa de queijo, bolo e fruta! É demais!
Temos um bar em que há de tudo, com um luxo formi
dável, uma sala de chá e "dancing" em que se
toma chá e bolos às 17h e se ouve o conjunto privativo
do paquete. Isto é enorme e extraordináriamente
luxuoso, só vendo é que se pode fazer uma ideia
[...] real. Piscina, esplanada, cinema, etc etc. É um luxo.
Amanhã passamos pela Madeira, mas só estamos
duas horas, não poderemos sair do barco, mas sai o
correio. Não tenho selos para pôr nesta carta e na
que escrevo para casa, mas devo arranjá-los na Madeira.
Já não posso visitar o sr [N] como esperava.

Querida [N] então o que te disse a médica?
O [N] disse-me que tu lhe contaste que ela
te ralhou imenso por não teres já lá ido e te proibiu
de mexer nos livros durante um mês. Eu não
te dizia? Quem tinha e tem razão? Desleixaste-te
Fl. [2]r
[N] e eu já ando há uma série de tempo atrás de
ti. [N], por tudo te peço, que agora sigas rigoro
samente o tratamento que ela te indicou. Não
menosprezes o que ela te disse, colabora para te curares.
Gostava tanto de estar ao pé de ti, só que fosse um
minuto para te pedir face a face isto mesmo, porque
sei que tu não o recusarias e prometer-me-ias fazer
tudo o que a médica te indicou. Não eras capaz de
me recusar isso e prometendo me eu sabia que tu
cumpri-lo-ias.

[N], nem que seja preciso tu deixares de fazer
as cadeiras em Outubro e portanto tens de andar mais
um ano. Para te curares sacrifica tudo, inclusivé um
ano que podíamos casar mais cedo. Pela minha
parte estou disposta a tudo, a todos os sacríficios,
para te ver com saúde. Já te dizia ontem na carta,
que te amo totalmente e quero ser totalmente feliz
contigo
e sem saúde... .Faz o máximo que puderes
Depois de saber isto, como calculas fico preocupadíssimo
contigo, e sem saber mais notícias...Logo que possas
conta-me tudo àcerca do teu estado e trata-te [N],
trata-te meu amor. Ofereço este sacrifício da
minha comissão em Angola por ti. É preciso cola
borares para que eu sinta que esta oferta não é
em vão.

Ainda não sei nada mais àcerca da minha
vida. Não sei para onde vou nem para o que vou.
Tenho de me apresentar em Luanda, no Quartel
General no dia em que chegar e de lá é que
me dão o rumo. Se Deus quiser será para um
sítio bom ou para ficar em Luanda mesmo. Vamos
a ver o que me espera.
Fl. [2]v
A viagem ao que dizem demora 9 ou 10 dias neste
barco. Logo que chegar a Luanda e souber o meu
S P M imediatemente tu enviarei.

Concerteza que não escreverei mais nenhuma vez
antes de chegar a Luanda, porque só tiram o correio
quando se para nalgum porto, o que nesta viagem até
Angola, só acontecerá amanhã na Madeira.
Nada mais por hoje, [N]

Adeus, estou sempre contigo

[N]

P.S.
Dá cumprimentos meus aos teus pais, à [N], ao
[N] e ao [N].



Contexto
Guerra colonial



Palavras Chave

Tipo: notícias
História: guerra colonial
Sociologia: serviço militar, saúde, família




Suporte Material

Suporte: duas folhas de papel pautado de 32 linhas escritas em ambas as faces.
Medidas: 265mm × 155mm
Mancha Gráfica: duas linhas em branco a separar a fórmula de endereço do início do texto.




Créditos

Transcrição: Ana Guilherme
Revisão: Rita Marquilhas
Codificação DALF: Ana Guilherme
Contextualização: Joana Pontes




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