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Texto Fl. [1]r
Luanda [N] Estou a começar a escrever-te esta carta são nove da noite de quinta-feira. Espero acabá-la ainda antes de me deitar, mas só amanhã a porei no correio, para ir no avião da noite. [N], à hora a que receberes esta minha carta, já deverás ter recebido uma outra datada, salvo erro de 30, e que própriamente não chega a ser uma carta. Tem a sua razão de ser e eu já te conto o sucedido, não para me justificar, mas tão somente para ficares dentro da verdade, dentro daquilo que te prometi de te por a par de tudo o que se passasse comigo. Antes porém quero manifestar a minha admiração pelo atraso com que al gumas das minhas cartas chegam! Não compreendo como é que só te che gou carta no domingo, é mau funcionamento dos correios. Quando isso voltar a acontecer não fiques em cuidado, pois isso não me acontece por não ter sucedido alguma coisa, mas por qualquer outra razão. [N] deves ter ficado assim um pouco surpreendida com a carta última que te enviei e que refiro acima. E tens, razão para isso. Tanto pela quantidade, como pela qualidade, como pela caligrafia. Mas eu vou contar-te toda a verdade , aliás antes de escrever essa hipó tese de carta já tinha intenção disso. Peço-te no entanto, antes de ir adiante, que acredites em tudo o que te vou dizer, que é tudo. Na segunda-feira por volta do meio-dia, fui chamado ao Quar tel General, com uma certa expectativa da minha parte, pois não fazia uma ideia do que se tratava. Apresento-me lá e foi-me comunicado que no dia seguinte, terça-feira partiria de madrugada para o Norte a comandar uma coluna de reabestecimento. Não fiquei atrapalhado, não era caso para isso, mas surgiram-me umas preocupações no diz que respeito a ti e à minha mãe. É que realmente essas colunas, na ida e volta demoram uma semana e mais. E como iriam vocês estar sem notícias tanto tempo? Começariam logo a pensar mil e uma Fl. [1]v coisas. E então o que é que fiz. Fabriquei nesse dia à noite, umas car tas e uns aerogramas para vós, devidamente datados espaçadamente e deixei-os a um colega para mos ir metendo no correio, nos respectivos dias! Espero que me compreendas, impunha-se esta medida da minha parte, em face das reacções que tu irias ter. Tinha de ocupar o tempo para não desconfiarem que algo de anormal se estava a passar. E impunha-se isto porquê? Se te dissessse logo ficarias uns dias até receberes novamente carta minha aí atrapalhada de todo e no teu estado não con vém nada coisas deste género. Espero que me compreendas e me desculpes. Está bem [N]? Evidentemente que á minha mãe não disse, não digo, nem direi e espero e peço-te que também não lhe digas nada, que fui lá cima senão fica para aí desanimada, atrapalhada e a meter "macaquinhos" na cabeça. E entrendo dentro de tal missão de serviço de que fui incumbido vou contar-te tudo, como q se passaram as coisas. Fui nomeado comandante da coluna de reabastecimento destinada a Nanbuangongo (lembras-te deste nome nos anais de guerra em Angola?). Parti na terça-feira de madrugada às três da manhã a comandar uma coluna de trinta e duas viaturas civis (camiões pesados) carregados de géneros e munições para as tropas aquarteladas no Norte, nas zonas operacionais. Até ao Caxito (65 Kms de Luanda) fomos sem escolta militar, pois não há nada até aí e é estrada asfeltada. Embora fosse um pouco preo pado, pois a responsabilidade era enorme e ia para uma das piores zonas de terrorismo de Angola, actualmente, não ia com medo. A partir do Caxito, onde começou a nossa viagem na picada, fomos escoltados por dois grupos de combate vindos de Quicabo. Começou aí a zona de acção dos terroristas, onde eles tem atacado algumas colunas tanto militares como deste género. Seguimos o trajecto por Quicabo, Balacende, Beira Baixa, Onzo e Nanbuangongo. Em todas estas localidades deixámos viveres e demais carga que a elas vinham destinadas, pois em todas elas estão aquarteladas várias unidades militares. Até Nabuangongo desde o Caxito foram 250 Kms percorridos na picada. Fl. [2]r Uma poeira incrível a ferir os olhos e a cobrir o camuflado e o corpo! Já pareciamos uns peles vermelhas! Mas lá fomos andando, sempre recebidos com entusiasmo e carinho pois lhes levava os mantimentos e as munições para a sua defesa. E, graças a Deus, lá cheguei a Nabuangongo com a coluna, sem ter levado ataques nem minas anti-carro. Embora levássemos a escoltar a coluna dois grupos de combate, os vários militares que iam distribuidos pelas viaturas civis iam armados também. Eu levei sempre a minha espingarda automática colada a mim, e pronta a fazer fogo ao mínimo alarme. Mas graças a Deus, não foi preciso utilizá-la, assim como as 3 granadas que levava também. Chegámos a Nanbuangongon à meia noite certa seguinte, e esta era o término da coluna. Descarregou-se tudo o que se trazia e abalámos no dia seguinte, quarta, às duas da tarde de regresso à base. As mesmas preocupações e a mesma disposição, mas os terroristas continuaram a não aparecer e ainda bem. Pernoitámos em Beira Baixa e saímos às três da manhã na continuação do regresso, tendo chegado a Luanda hoje às duas da tarde. Bati um recorde com esta minha coluna, demorei o mínimo tempo até hoje feito neste percurso. Em média costumava-se aproximar da semana e eu só demorei dois dias e meio. Foram estas duas noites a comer pó e a respirar pó. A picada é só pó. Estreitíssima, cheia de covas, com um percurso acidentadíssimo, rodeada de matas impenetráveis a brancos onde cada momento espreita o perigo. A comer mal, à base de ração de combate. Sem água para me nos lavarmos nem para beber, só no estacionamento. Andei todo este tempo sem lavar a cara sequer, já não falo em tomar banho, sem fazer a barba e sem tirar as botas nem a roupa camu flada que trazia! A primeira noite ainda dormitei sobre uma enxerga, mas na segunda quase nada dormi. Mas graças a Deus tudo correu pelo melhor em todos os aspectos e chegámos hoje a Luanda, sem qualquer azar. Para mim foi uma experiencia agradável do Norte, e fiquei a fazer uma ideiazinha do que é a vida no mato, naqueles desterros onde só se está seguro dentro do acampa mento e onde se passa uma vida de privações e sacrifícios. Que alegria aquela malta quando nos via chegar, pois além do comer traziamos uma coisa mais im portante, o correio. Fl. [2]v Para baixo trouxe na coluna mais de 50 viaturas, pois deixei incluir al guns civis que carregados de café e que normalmente se acolhem à protecção da escolta militar. Ao longo da picada a coluna chegou a atingir mais de seis quilómetros de extensão! Repito, que foi uma experiência agra dável para mim. Para estas colunadas são designados todos os oficiais que estão em Luan da um por cada vez, quer sejam da Infantaria quer sejam da Adminis tração. Já não devo tornar a fazer nenhumas, mas se tornar é só lá para o fim. É que em Luanda há milhentos oficiais em todas as Repar tições e quartéis. [N], tudo o que se passou contei-te, não te omiti nada, portanto não fiques a pensar "coizinhas", está bem? Quanto à pergunta que me fazes se no fim da instrução que estou a dar, se vou ou não com eles para o mato, não sei responder. Não faço a mínima ideia, na tropa nunca se sabe nada, só na altura própria nos dizem as coisas. Aguardo, mas desde já te digo, quer vá ou não vá, não me faz grande diferença. Estou preparado para tudo. Como compreendes [N], estou cheíssimo de sono e maçadíssi mo destes dias. Estou a fazer um sacríficio para estar a escrever para ti e ainda escrever duas linhas para casa. Mas tem de ser. Na próxima carta, que escreverei tão depressa quanto possível, responderei ponto por ponto aos assuntos constituintes das tuas cartas. A tua saúde? Como vai o estômago? Ja foste co médico? E o que ele disse? E a cabecita e os nervos? Calma, calma, calma!!! Manda-me dizer tudo sobre ti, estou preocupado. Adeus meu amor Estou sempre contigo, o teu [N] Contexto Guerra Colonial Palavras Chave Tipo: notícias Suporte Material Suporte:
duas folhas de papel pautado de 32 linhas escritas em ambas as faces.
Créditos Transcrição: Ana Guilherme Discorda da nossa leitura? Por favor escreva-nos: cardsclul@gmail.com |
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