1967. Carta de amor de um alferes para a sua namorada. De Luanda para [Coimbra] (concelho). FLY0066

FLY0066
Carta de amor de um alferes para a sua namorada. De Luanda para [Coimbra] (concelho).

Data
31/08/1967

Referência Arquivística
N.A..
N.A., Coleção Particular, FLY0066, Fólios [1]r-v e [2]r-v

Resumo
O autor conta à namorada como decorreu uma picada até Nanbuangongo.

Local
Luanda

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Texto

Fl. [1]r

Luanda

31 de Agosto de 1967

[N]

Estou a começar a escrever-te esta carta são nove da noite de quinta-
feira. Espero acabá-la ainda antes de me deitar, mas só amanhã a porei
no correio, para ir no avião da noite.
[N], à hora a que receberes esta minha carta, já deverás ter recebido uma
outra datada, salvo erro de 30, e que própriamente não chega a ser uma carta.
Tem a sua razão de ser e eu já te conto o sucedido, não para me justificar,
mas tão somente para ficares dentro da verdade, dentro daquilo que te prometi
de te por a par de tudo o que se passasse comigo.

Antes porém quero manifestar a minha admiração pelo atraso com que al
gumas das minhas cartas chegam! Não compreendo como é que só te che
gou carta no domingo, é mau funcionamento dos correios. Quando
isso voltar a acontecer não fiques em cuidado, pois isso não me acontece
por não ter sucedido alguma coisa, mas por qualquer outra razão.

[N] deves ter ficado assim um pouco surpreendida com a
carta última que te enviei e que refiro acima. E tens, razão para isso.
Tanto pela quantidade, como pela qualidade, como pela caligrafia.
Mas eu vou contar-te toda a verdade , aliás antes de escrever essa hipó
tese de carta já tinha intenção disso. Peço-te no entanto, antes de
ir adiante, que acredites em tudo o que te vou dizer, que é tudo.

Na segunda-feira por volta do meio-dia, fui chamado ao Quar
tel General, com uma certa expectativa da minha parte, pois não fazia uma
ideia do que se tratava. Apresento-me lá e foi-me comunicado que
no dia seguinte, terça-feira partiria de madrugada para o Norte a
comandar uma coluna de reabestecimento. Não fiquei atrapalhado,
não era caso para isso, mas surgiram-me umas preocupações no diz que
respeito a ti e à minha mãe. É que realmente essas colunas, na ida e
volta demoram uma semana e mais. E como iriam vocês estar
sem notícias tanto tempo? Começariam logo a pensar mil e uma
Fl. [1]v
coisas. E então o que é que fiz. Fabriquei nesse dia à noite, umas car
tas e uns aerogramas para vós, devidamente datados espaçadamente
e deixei-os a um colega para mos ir metendo no correio, nos
respectivos dias! Espero que me compreendas, impunha-se esta medida da
minha parte, em face das reacções que tu irias ter. Tinha de ocupar o tempo
para não desconfiarem que algo de anormal se estava a passar. E
impunha-se isto porquê? Se te dissessse logo ficarias uns dias até receberes
novamente carta minha aí atrapalhada de todo e no teu estado não con
vém nada coisas deste género. Espero que me compreendas e me desculpes.
Está bem [N]? Evidentemente que á minha mãe não disse, não
digo, nem direi e espero e peço-te que também não lhe digas nada, que
fui lá cima senão fica para aí desanimada, atrapalhada e a meter
"macaquinhos" na cabeça.

E entrendo dentro de tal missão de serviço de que fui incumbido vou
contar-te tudo, como q se passaram as coisas.

Fui nomeado comandante da coluna de reabastecimento destinada a
Nanbuangongo (lembras-te deste nome nos anais de guerra em Angola?).
Parti na terça-feira de madrugada às três da manhã a comandar uma
coluna de trinta e duas viaturas civis (camiões pesados) carregados de
géneros e munições para as tropas aquarteladas no Norte, nas zonas operacionais.
Até ao Caxito (65 Kms de Luanda) fomos sem escolta militar, pois não
há nada até aí e é estrada asfeltada. Embora fosse um pouco preo
pado, pois a responsabilidade era enorme e ia para uma das piores
zonas de terrorismo de Angola, actualmente, não ia com medo.
A partir do Caxito, onde começou a nossa viagem na picada, fomos
escoltados por dois grupos de combate vindos de Quicabo. Começou
aí a zona de acção dos terroristas, onde eles tem atacado algumas
colunas tanto militares como deste género. Seguimos o trajecto
por Quicabo, Balacende, Beira Baixa, Onzo e Nanbuangongo.
Em todas estas localidades deixámos viveres e demais carga que
a elas vinham destinadas, pois em todas elas estão aquarteladas
várias unidades militares.

Até Nabuangongo desde o Caxito foram 250 Kms percorridos na picada.
Fl. [2]r
Uma poeira incrível a ferir os olhos e a cobrir o camuflado e o corpo! Já
pareciamos uns peles vermelhas! Mas lá fomos andando, sempre recebidos
com entusiasmo e carinho pois lhes levava os mantimentos e as
munições para a sua defesa. E, graças a Deus, lá cheguei a Nabuangongo
com a coluna, sem ter levado ataques nem minas anti-carro. Embora
levássemos a escoltar a coluna dois grupos de combate, os vários militares
que iam distribuidos pelas viaturas civis iam armados também. Eu levei sempre a minha espingarda automática colada a mim,
e pronta a fazer fogo ao mínimo alarme. Mas graças a Deus,
não foi preciso utilizá-la, assim como as 3 granadas que levava também.
Chegámos a Nanbuangongon à meia noite certa seguinte, e esta era
o término da coluna. Descarregou-se tudo o que se trazia e abalámos no
dia seguinte, quarta, às duas da tarde de regresso à base. As mesmas
preocupações e a mesma disposição, mas os terroristas continuaram a
não aparecer e ainda bem. Pernoitámos em Beira Baixa e saímos às três
da manhã na continuação do regresso, tendo chegado a Luanda
hoje às duas da tarde. Bati um recorde com esta minha coluna, demorei
o mínimo tempo até hoje feito neste percurso. Em média costumava-se
aproximar da semana e eu só demorei dois dias e meio.

Foram estas duas noites a comer pó e a respirar pó. A picada é só pó.
Estreitíssima, cheia de covas, com um percurso acidentadíssimo, rodeada de
matas impenetráveis a brancos onde cada momento espreita o perigo.

A comer mal, à base de ração de combate. Sem água para me nos lavarmos nem para
beber, só no estacionamento. Andei todo este tempo sem lavar a cara sequer, já não
falo em tomar banho, sem fazer a barba e sem tirar as botas nem a roupa camu
flada que trazia! A primeira noite ainda dormitei sobre uma enxerga, mas na segunda
quase nada dormi. Mas graças a Deus tudo correu pelo melhor em todos os
aspectos e chegámos hoje a Luanda, sem qualquer azar. Para mim foi uma
experiencia agradável do Norte, e fiquei a fazer uma ideiazinha do que é a
vida no mato, naqueles desterros onde só se está seguro dentro do acampa
mento e onde se passa uma vida de privações e sacrifícios. Que alegria aquela
malta quando nos via chegar, pois além do comer traziamos uma coisa mais im
portante, o correio.
Fl. [2]v
Para baixo trouxe na coluna mais de 50 viaturas, pois deixei incluir al
guns civis que carregados de café e que normalmente se acolhem à protecção
da escolta militar. Ao longo da picada a coluna chegou a atingir mais
de seis quilómetros de extensão! Repito, que foi uma experiência agra
dável para mim.

Para estas colunadas são designados todos os oficiais que estão em Luan
da um por cada vez, quer sejam da Infantaria quer sejam da Adminis
tração. Já não devo tornar a fazer nenhumas, mas se tornar é só lá
para o fim. É que em Luanda há milhentos oficiais em todas as Repar
tições e quartéis.

[N], tudo o que se passou contei-te, não te omiti nada, portanto
não fiques a pensar "coizinhas", está bem?

Quanto à pergunta que me fazes se no fim da instrução que estou
a dar, se vou ou não com eles para o mato, não sei responder. Não
faço a mínima ideia, na tropa nunca se sabe nada, só na altura
própria nos dizem as coisas. Aguardo, mas desde já te digo, quer vá
ou não vá, não me faz grande diferença. Estou preparado para tudo.
Como compreendes [N], estou cheíssimo de sono e maçadíssi
mo destes dias. Estou a fazer um sacríficio para estar a escrever para
ti e ainda escrever duas linhas para casa. Mas tem de ser.
Na próxima carta, que escreverei tão depressa quanto possível, responderei
ponto por ponto aos assuntos constituintes das tuas cartas.

A tua saúde? Como vai o estômago? Ja foste co médico? E o que ele
disse? E a cabecita e os nervos? Calma, calma, calma!!!

Manda-me dizer tudo sobre ti, estou preocupado.

Adeus meu amor

Estou sempre contigo, o teu

[N]




Contexto
Guerra Colonial



Palavras Chave

Tipo: notícias
História: guerra colonial
Sociologia: intimidade, comunicação, serviço miltar, conflito armado




Suporte Material

Suporte: duas folhas de papel pautado de 32 linhas escritas em ambas as faces.
Medidas: 265mm × 155mm
Mancha Gráfica: quatro linhas em branco a separar a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Ana Guilherme
Revisão: Rita Marquilhas
Codificação DALF: Ana Guilherme
Contextualização: Joana Pontes




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