1967. Carta de amor de um alferes para a sua namorada. De Luanda para [Coimbra] (concelho). FLY0068

FLY0068
Carta de amor de um alferes para a sua namorada. De Luanda para [Coimbra] (concelho).

Data
28/09/1967

Referência Arquivística
N.A..
N.A., Coleção Particular, FLY0068, Fólios [1]r-v, [2]r-v, [3]r-v, [4]r-v

Resumo
O autor escreve uma longa carta à namorada sobre o seu dia-a-dia e sobre uma possível ida a Nova Lisboa; também a repreende por ela não olhar pela sua saúde e reitera o amor que lhe tem.

Local
Angola

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Texto

Fl. [1]r
Luanda, 28 de Setembro de 1967

[N]

Pedi para sair mais cedo do quartel, eram cerca
de cinco e meia e normalmente só podemos sair às
seis horas, quando acabamos os serviços e a instrução. E
pedi autoriação para sair mais cedo precisamente
porque precisava de enviar umas coisitas para aí pelo
correio. Mas cheguei aos CTT e disseram-me que
aquilo que eu pretendia enviar tinha mais de meio
quilo e este é o limite máximo para o correio de
avião registado via CTT. Disseram-me que só numa
outra secção chamada Encomendas Postais eu
poderia enviar aquelas coisas. Fui lá mas com tanto
azar, que já havia fechado às cinco. Nem me desfardei
nem nada para ir fazer aquilo e afinal apanhei
um "barrete". Fica para amanhã, amanhã tenho de
pedir outra vez para sair mas tenho que ser mais
cedo. Como não tinha mais nada que fazer na
Baixa e como também já era tarde para regressar
ao quartel, vim para a Messe de Oficiais e aqui
estou à espera que abra o refeitório para ir jantar, que
é as sete. Aproveito este espaço de tempo para come
çar a carta para ti, que certamente já não aca
barei a tempo de ir por no Correio para ir no avião
da manhã de amanhã e nesse caso só irá no
sábado à noite.

Há hora que saí do quartel ainda não tinha
chegado o correio, por isso não sei se tenho ou não
correspondência. Só daqui a uma hora o saberei.
Olha [N], sábado ou domingo, ainda não sei,
Fl. [1]v
certamente, que irei ter a oportunidade de conhecer
mais uma vasta zona de Angola. Mas desta vez sem
correr o mínimo perigo e até uma viagem bem agra
dável e que faço com muito gosto e muita curio
sidade. Vou de viagem até Nova Lisboa. Vou acom
panhar um grupo de soldados recrutas, que acabaram
aqui a instrução básica e vão transferidos para Nova
Lisboa onde vão tirar diversas especialidades. Como o
grupo é grande e se torna por isso necessário a
ida dum oficial a comandá-lo, fui convidado
para isso e aceitei com agrado, embora neste mo
mento não esteja ainda definitivamente assente.
É uma oportunidade, talvez única, de conhecer o
sul de Angola que dizem ser estupendo. Vou armado
em turista, com máquina fotográfica e tudo! A viagem
é feita em autocarros militares usados para fins
semelhantes. Oxalá, que assentem definitivamente
em ser eu a ir, pois não vou dependente de nin
guém, eu é que vou a dirigir e tenho toda a
liberdade de acção. Gosto de viajar e de conhecer
coisas novas. Serve-me até inclusivamente para mudar
de ambiente e de ares, que isto satura ao fim de algum
tempo. É sempre a mesma paisagem e as mesmas coi
sas, todos os dias, quer sejam de semana, quer no fim de
semana. Veio mesmo a calhar bem esta viagem.
Certamente tudo correrá bem e darei a viagem
por bem empregue. Apesar de a responsabilidade ser
ainda um bocadinho. Ao que me dizem irei passar
em sítios estupendos, entre eles a barragem de Cambam
be e o Colonato da Cela. Em Nova Lisboa sei que
há muita gente da Pampilhosa mas como não sei
moradas deve ser difícil encontrar quem quer que
seja. O regresso deve ser terça-feira. Depois contar-te
Fl. [2]r
-ei pormenores da viagem.
Continuo a carta na sexta. São dez da noite
e recebi há pouco uma carta tua. Afinal já sei que
a ida para Nova Lisboa é no domingo de manhã cedo.
Então como correu o exame? Há hora a que estavas
nele lembrei-me de ti. Não me podias esquecer.
Quando receberes a minha carta certamente na
segunda, já fizeste a Puericultura. Manda-me dizer
como correu. Sabes bem que fico ansioso por saber
notícias tuas. Quando contas que saiam as notas
das escritas? As orais são logo a seguir, certamente.
As aulas no Instituto quando começam?

Então, [N], a tua saúde? Regozijo-me com o
facto de não te ter tornado a doer o estâmago e a
cabeça. Só os nervos continuam muito por baixo.
Tem muito cuidado. E já agora quero "ralhar-te"
por não teres ido à médica no dia 15, como ela te
mandou. Parece impossível [N]! Andas positiva
mente a brincar com a tua saúde, e acho que não
deverias brincar com ela. Se te mandou lá ir,
porque não foste? E não venhas com justificações
de faltas de tempo e de disposição. O tempo arranja-
se e a disposição adquire-se, é preciso é vontade
de te curares, e pelo que fazes, leva a crer que a
vontade é mínima. Nem mais um dia passes
sem lá ir, senão fico aborrecido. E não posso,
querida [N], deixar de te dizer estas coisas, mas
tu não estás a proceder bem.

Já consegues dormir de noite? Para não conseguires
dormir noites seguidas, calculo o estado em que estás!
Isto assim, [N], não pode continuar. Não podes
ficar assim e andar sempre na mesma. Tens
de procurar uma cura, tão rápida e eficiente
Fl. [2]v
quanto possível. Assim não é vida! Se eu aí esti
vesse obrigava-te, percebes?, obrigava-te a ir aos mé
dicos. Assim ninguém te obriga, é o que se vê!
Podes crer [N] que ando preocupadíssimo contigo.
É que penso que já andas nesse estado há mais,
muito mais de meio ano! Foi práticamente
desde que começámos a namorar! Ainda se fosse
uma coisa de um mês ou dois, agora de oito ou
nove meses, é demais! Não podes continuar
assim. E não me digas na tua próxima carta
para não me preocupar tanto contigo e não sei que
mais, que sabes bem que tenho que me preocupar.
Só não me preocuparia se tu não constituisses
nada para mim. Se fosses o meu passatempo.
Mas não, és a minha namorada e hás-de ser, se
Deus quiser a minha mulher e como tal não é só
a partir do momento em que nos casamos que
passo a preocupar-me com a tua saúde. Enten
des [N]?

Já te disse que te quero com todas as tuas virtu
des e todos os teus defeitos, assim como te quero com
toda a tua saúde e as tuas doenças. A minha
decisão é inabalável. Mas agora também quero é que
tu faças o máximo por curares as doenças de
maneira, a se possível, só existir a saúde.
Acho que fui bem explícito, meu amor.
E, como tem estado o ambiente em casa, [N]?
Tens de compreender que é natural esse comportamento
por parte dos teus pais. Eles não estão preparados,
assim como não estavam os meus e os da imensa
maioria da malta nova. Tens de suportar e
encarar isso com naturalidade, sem te aborreceres
e desanimares. Não podes, querida [N], cair em
Fl. [3]r
estados semelhantes àquele em que estavas quando
me escreveste a outra carta, em que me dizes que
já tanto te importa passar como reprovar e não sei
que mais, que já não tens vontade de estudar, etc.
Isto não pode acontecer, [N]. Oh [N], lembra-
te que há gente que sofre ainda mais
do que tu e aguenta estóicamente. O exemplo de
Cristo mantém-se vivo. Há que saber sofrer e
saber aguentar. É todo esse desânimo,
que envolve horas de meditação e p mil e um pensa
mentos que te arrasa e dá cabo de ti. Não pode
ser [N], não pode ser. Tens de ser forte. Não
se pode desanimar com as dificuldades que apa
recem, sejam elas de que envergadura forem. Faz-
se por vencê-las, se conseguirmos formidável, se
não conseguirmos paciência. Nesta altura tudo
te tem sido adverso, eu sei [N]. Mas há que confiar
em dias melhores, e ter calma e esperança. Isso
é para as pessoas que não têm Fé, mas tu tens.
Olha [N] eu passo aqui uns bocaditos nada bons
principalmente pela solidão e isolamento e por
causa das saudades de ti, da minha mãe e do
meu irmão. Eles tem problemas e tu tens problemas.
E pensa bem [N] o que é eu estar aqui longe
sem vos poder ajudar e sentir a responsabilida
de de uma lar, do bem estar da minha mãe e do
[N] e da educação dele. Eu esqueceria tudo
isso, se enveredasse pela vida que alguns levam.
Teria uma vida cheia, em contraste com a solidão de
agora. Mas cheia de quê? E pensando nisto, digo
a mim mesmo não. Não teria problema, mas
antes os quero ter, seria cobarde fugir deles.
E daqui a alguns meses irei até ao mato.
Fl. [3]v
Estás a ver se eu fosse a desanimar com tudo
isto, o que faria? Só uma solução haveria, por ter
mo à vida. Mas não, longe de mim tal pensamento.
Tenho momentos de desânimo, mas logo recupero.
Vem-me a esperança em dias melhores e
baseio-me na fé. Tem de ser assim, [N].
E quantos "coices" um indíviduo leva nesta
vida! Há que sofre e aguentar! É assim a vida!
Perguntas-me se a especialidade vai ser
pior ou melhor que a instrução básica. Vou
contar-te tudo para perceberes. Aliás pedes-me
uma carta para te contar tudo, para não te
ocultar nada e eu assim faço. Como te digo,
lá em cima, irei para o mato daqui a uns
meses. É verdade, lá para fins de Janeiro dsigo
uma companhia para o Norte, ainda não sei
para onde. Ora os homens que vou levar comigo
são aqueles a quem vou dar agora instrução
de especialidade. Como tal e como sou eu que
vou com eles tenho todo o interesse e toda a
vantagem em os preparar bem. Como tal há
que puxar, tem de ser, esta instrução
é mais puxada que a que acabei de dar.
Mas não há problema, pois estou preparado
para tudo. É preciso é calma.

[N] disse-te isto porque te digo tudo. Mas
peço-te que não fiques para aí preocupada pois
não há razão para isso. Nunca toques no assunto
à Mãe, pois ela não tem qualquer vantagem
em saber isso, como deves compreender. Depois há
tempo de ela saber que fui "passar férias" ao Norte.
Confio em ti, pois já em relação ao teu irmão, quando
estava na Guiné se passaram coisas indênticas e
Fl. [4]r
vocês não contaram à vossa mãe. O K meu amor?
Agradeces-me [N], a ajuda que te dei etc.
Já sabes que entre nós não há agradecimentos. A
obrigação de ajuda está implícita no nosso
amor e é obrigação mutua. Disse-te tudo
aquilo porque te quero muito, te amo muito,
tu bem o sabes. Inclusive a hipótese que te apresenta
va de casarmos embora levantado imensos pro
blemas, era dentro desse espírito.

Acho bem o que resolveste fazer. Deus queira é
que realmente as coisas se passem de maneira
a teres de falar aos teus pais. Era sinal de que
tinhas passado! Eu confio que sim.

Bem [N], já me alonguei demasiado.
Hoje estava com disposição para escrever. É pena
é só ser às vezes.

Dá cumprimentos meus aos teus pais, à [N],
ao [N] e ao [N] e igualmente a todas as
moças amigas.
Adeus [N], estou sempre contigo. Muita sau
dade do sempre teu

[N]

P.S.
P S- Vão mais três fotos. Sempre que puder envia
(a)rei. Actualmente tenho um "stock" grande.
-Deverei escrever de Nova Lisboa. Mas se não escrever já sabes a razão.

(a) Não sei se gostas ou não que te envie fotos.
Das que vão hoje, uma é junto dum monumento
que existe aqui no quartel, outra tirada na fortaleza
de S Paulo virado para a cidade e a outra tirada no
de instrução com o camuflado.
(volta)
Fl. [4]v
P S-Se o chá tem feito bem a ti e a [N] eu
mando mais. Diz-me logo que quiseres.
Sabes bem que ficarei imensamente aborrecido
se não me pedires para mandar mais e
ele ter feito bem. [N]



Contexto
Guerra Colonial



Palavras Chave

Tipo: reprimenda
História: guerra colonial
Sociologia: comunicação, intimidade, serviço militar, educação, saúde, religião




Suporte Material

Suporte: duas folhas de papel pautado de 32 linhas escritas em ambas as faces.
Medidas: 265mm × 155mm
Mancha Gráfica: quatro linhas em branco a separar a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Ana Guilherme
Revisão: Rita Marquilhas
Codificação DALF: Ana Guilherme
Contextualização: Joana Pontes




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