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Texto Peniche, [N]: Como estás tu?Conheci a carta que escreveste à [N] e senti expressa necessidade de te escrever. Agradecer-te, [N], a compreensão e sensibilidade. Agradecer-tas muito, e ainda muito. Não sejas tola, não se trata de forma alguma de te "estragar a vida" ou coisa semelhante. Tu sabes pre- feitamente que não é nada disso, que eu não seria capaz de o fazer, que eu me oporia, tanto quanto pudesse apesar de preso. Não vejas as coisas assim, viradas contra ti: seria injusto! Tu própria verás que a solução encontrada é uma boa solução para a [N] e para nós ambos. Agora é normal que te custe, nesta fase primeira, sobretudo porque tenderás a exagerar e a dramatizar, a preconceber as coisas como as coisas nunca serão. Depois irás verificando uma realidade bem diferente da visão enegrecida que agora te possui. Lisboa é a meia dúzia de horas do Porto (e vice-versa), a [N] manterá todo o amor e toda a ternura e todo o respeito por ti. E tu própria poderás sempre, mas sempre, comprovar o que se for processando, as reacções da [N], o seu desenvolvimento, a sua educação, o seu equilíbrio, a sua vida. E se houver motivos para isso - quaisquer motivos - a [N] voltará. Assegurei-te solenemente que assim seria. E tu sabes, [N], que é das tais coisas que me são sagradas; tu sabes, [N], que o cumpri- rei inflexivelmente, contra tudo, contra mim. No resto, estou de acordo contigo. E eu próprio sublinhei à [N] quanto me pa- reciam acertados e justos os teus concelhos e as tuas recomendações: que a [N] não possa pensar que foi rejeitada por ti ou forçada por mim; que a [N] se convença que ficou porque quis ficar ela própria; que estejamos atentos, com isenção e sem ideias preconcebidas, ao seu comportamento, avaliando-o com lucidez. Velar-se-á por isso, [N] Para já, a [N] ficará no Porto este ano lectivo, dando-se ao facto um ar natural e sem tensões, sem que nós ambos (os pais) lhe apareçamos divididos sobre ela. Incutindo-lhe a ideia (aliás, verdadeira) que o pai está preso, que a mãe trabalha muito, que a Avó [N] é doente e velhinha, que ela está ali a estudar, a crescer e que ela, [N], gostou de ficar. E todos estaremos atentos, tu também, empenhados até ao fundo do coração na [N] acima do resto. Entretanto, tu estabilizarás vários aspectos da tua vida, a mudança de casa que terás de Fl. [1]v fazer (disseste), o emprego, etc, etc. serão milhentas coisas a absorver-te. E, em muitos aspectos, será uma grande diminui- ção de trabalho para a tua Mãe, de preocupações diárias para ti (e também para mim). Mas não haverá coisas definitivas nem irremediáveis. Sejamos naturais, sensatos; não dramatizemos, não exageremos. Tu verás, acredita [N], como te falo com verdade. Procurarei manter-te - e que te mantenham - sempre ao corrente do que se passa. Com objectividade e escrúpulo. (A propósito, não te esqueças de me mandar a tua nova direcção, logo que e se mudares). Falemos agora da [N], da doce [N]. Eu gostaria que a miudinha continuasse numa escola infantil; far- lhe-á bem, conviverá com outras crianças, desenvolve-se. Não sei nem a tua opinião nem os prolemas económicos que se levantam contra isto. Quero continuar a ajudá-la, a acompanhá-la, a amarmo-nos muito. Porque a amo muito. Diz-me com à vontade e franqueza a situação existente para eu ver, como no ano passado, o que se poderá fazer. É muito importante para mim, [N]. Nem sabes quanto... Tu conheces a existência de questiúnculas ou questões (nem eu sei bem) na minha familia. Não vale a pena pormenorizar, és capaz de conhecer os detalhes melhor do que eu, sobretudo nos aspectos mais recentes. São pro- blemas delicados, como compreendes. Às vezes - geralmente temporariamente, embora com duração variável - criam-se desencontros ou atritos destes. Tu sabes como estas coisas são, aliás, bem vulgares. Eu quero pedir-te, [N], o favor de não contribuires para que se agravem: não estou a referir-me a nada de preciso ou de concreto; estou apenas a pedir-te que sejas precavida. Às vezes, involuntariamente, mesmo sem te dares conta, se não es- tivesses prevenida e atenta, poderia acontecer. Como está a tua saude? Os problemas do teu emprego? Fiquei contente quando, já no mês passado, soube que acabaras por não desistir; não sei se a nossa conversa de Julho contribuiu alguma coisa pra essa decisão que considero a unica acertada, mas, de qualquer modo, alegrei-me. As tuas chatices? Eu por cá vou estando. Conta comigo sempre. Abraço-te. [N] P.S.Ps - Não sei como te devolver estes livros do Guimarães Rosa que já li. Sugeres alguma coisa? Se houver qualquer pressa, não hesites em dizer-me porque tos enviarei mesmo pelo correio. [N] Contexto Prisão Palavras Chave Tipo: conselho Suporte Material Suporte:
uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Créditos Transcrição: Leonor Tavares Discorda da nossa leitura? Por favor escreva-nos: cardsclul@gmail.com |
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