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Texto
Fl. 5r
9/4/74, 18,15 h
Querida [N]
Cheguei PRÁTICAMENTE (...descoberta brilhante...!)à conclusão que o trabalho quando não
é adaptado à pessoa que o realiza é
um factor de destruição para essa pessoa.
Como se gastam todas as energias
na execução de uma tarefa que nos é
ESTRANHA, a nossa actividade verdadeira
é simplesmente boicotada. Perdemos todas
as potencialidades, ou melhor, todas as
efectivações daquilo que na verdade nos
diz respeito.
Sinto que estou castrado por causa
do trabalho. Não é que isso tenha
atingido proporções trágicas, mas de
qualquer modo o facto de me sentir
extremamente limitado em tudo o
que diz respeito a imaginação, poesia
e criação (atrevo-me a admitir que
posso desenvolver uma actividade de
criador, evidente a um determinado
Fl. 5v
nível) não me agrada nada.
Compreendo melhor que nunca até
que ponto, o trabalho (social, de consumo,
aquele que se faz porque se necessita de
ganhar a vida) condiciona a ignorancia,
o retrocesso, a falta de CONHECIMENTO.
Vive-se para trabalhar, quando se
deveria viver a trabalhar (aqui o
termo trabalho, tem como é obvio
uma outra dimensão) isto é, trabalho
como prolongamento, realização, identificação
da necessidade de VIVER que todos sen-
timos.
Não me sinto destruido; sinto que
é negativo realizar esta actividade.
É evidente que tudo quanto digo se
pode aceitar a um nível ideal, porque
a um nível prático, infelizmente,
é ingenuidade. Mas, e falando
de mim, penso que tudo isto, todas
as coisas por que vou passando, me
dão um visão sempre mais correcta
sobre aquilo que eu QUERO e DEVO
fazer. É como se fosse uma preparação
Fl. 6r
para quando acontecem os momentos
de OPÇÃO saber tanto quanto possível
resolver bem a situação. Por fim, é um
um meio de conhecer-me (que gosto? que
quero? que posso? [FAZER])
Ao fim e ao cabo é sempre o mesmo:
SER OU NÃO SER - eis a questão -
vamos sempre cair infalivelmente na
discussão habitual:
(Diz a máquina ao homem)
ou me serves ou não me serves
se sim, eu protejo-te
se não, vejamos quem ganha
mas o maravilhoso, é passar a vida
a lutar.
Todo este tempo, todas estas coisas
para dizer muito simplesmente que
me sinto com uma falta de origina-
lidade, de espontaneadade incríveis.
Uma prova é, por exemplo a
chatice das minhas cartas. Não sei
escrever nada de vivo, de interessante
Fl. 6v
A única coisa que me tem dado
alguma recompensa é o laboratório.
[...]
Fl. 7r
Daqui a pouco vou ver "l' eccezione e la
regola" di Bertolt Brecht del do gruppo
Teatrale "Il telaio" que se exibe no
Teatro Affratellamento.
[...]
Se te quisesse falar de todos os filmes
e peças que tenho visto estava aqui
uma infinifade de tempo.
Fl. 7v
Não, não penses que tenho ido ver
todas as "primeiras visões"; custam caro
- 1.500 liras.
Acontece que aqui existem uma profusão
de ciclos sobre clássicos que se paga
só 200 ou 300 liras por cada filme.
[...]
Fl. 8r
[...]
Os trechos que mandaste do Raul Brandão
são um espanto.
[...]
"Encontrei há pouco uma árvore
carcomida: deixaram-na de pé, e um
único ramo ainda verde desentranhou
se em flor"
É das ideias mais belas que vi escritas!
Fl. 8v
Acerca de... agitações, tudo ficou em
águas de bacalhau, não é verdade?
- Não se nasce impunemente nas
praias de Portugal -
[...]
Até breve
[N]
Contexto
Exílio
Palavras Chave
Tipo: declaração
História: exílio
Sociologia: emprego, familia, cultura, condições económicas
Suporte Material
Suporte:
quatro folhas de papel de carta sem linhas escritas em ambos os lados.
Medidas: 285mm × 219mm
Mancha Gráfica:
uma linha em branco entre a fórmula de endereço e o início do texto.
Créditos
Transcrição:
Leonor Tavares
Revisão: Leonor Tavares
Codificação DALF: Leonor Tavares
Discorda da nossa leitura? Por favor escreva-nos: cardsclul@gmail.com