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Texto Fl. [1]r Peniche, Meu amor: Tenho-me esforçado por te ver diariamente, por te acompanhar nas tuas andanças e fadigas. Entraste a suportar uma carga que nãoé pequena e o que é facto é que, talvez mesmo sem te dares conta, criam-se-te interesses, preocupações, jogos e teceduras de relações, de convívios, etc que te revitalizam e animam e vão ajudando a deitares para trás das costas depressões reativas. Mas não posso impediar-me de te ver "pequenino" e "soluço de ternura por ti" (lembras-te disto?). Ontem ao folhear um livro, o Mundo da Psicologia, topei com o uma passagem, a propósito da atenção, a que achei certo interesse. Vou-te transcrever porque é uma achega para a conversa que tivemos no domingo: «Uma pessoa é ofendida e a ofensa ma- goa-a. Toda a sua atenção encontra-se concentrada na ofensa. Não pensa em que ela própria podia não ter razão. Recorda a ofensa vinte ou mesmo cem vezes e sempre encontra mais e mais argumentos a seu favor. O seu amigo, a pouco e pouco vai se convertendo em seu inimigo. Sucede que, devido a essa falta de habilidade para concentrar a própria atenção, à preguiça de temporariamente a substituir por outros pensamentos, a pessoa favorita torna-se-lhe aborrecida. Mas se o ofendido tivesse sabido dominar a sua atenção e desviá-la voluntariamente para outros pensamentos, se dentro de certo tempo tivesse visto de outro modo o incidente, o amigo continuaria a ser amigo, e o seu preferido a ser preferido. Controlar a propria atenção significa saber não só diri- gi-la para o que é q necessário distinguir, mas também para o que deve passar desapercebido. Quem necessita disso? Qual quê? Não vais julgar que inventei a citação; é um livro publicado na editorial Presença, que poderás consultar se tiveres duvidas... Dentro de menos de um mês, faz anos a nossa [N]. Tens que lhe fazer uma festinha jeitosa, porque o merece e é muito tua amiga, até te deu os feltros. Seis anos! Relembro algumas vezes estes 6 anos e os outros dois - oito, ao todo - e espanta-me que nem sempre vejas o mundo de liames, de densas vicissitudes que nos entrelaçam. Às vezes dolorosas, por certo; mas que, de qualquer forma, significam uma ascensão para o mutuo conhecimento, a compreensão, o carinho, o mútuo sobressalto perante o sofrimento d um, a fusão real da vida de dois sujeitos. Podem-se nomear de muitas formas todas estas parcelas, mas o que sobreleva é que, de facto, se enlaçaram tantas coisas, todas as coisas. É muito perigoso e tremendamente falso, cair numa visão romanesca, côr de rosa, mitica, acerca dos caminhos por onde se vai tecendo e egendrando esta fusão. Se não é apenas uma junção superficial, muito convenientezinha, um conhecimento epidérmico cheio de atavios um simples estar-se por acaso lado a lado, então é necessariamente um processo muito complexo, de encanto e desencanto, de emaranhado encaminhar-se até se se encontrar, de profundo desvendar-se - desmascarar-se, se preferes. Pouco romancezi- nho de cordel, pouco sonhinho, pouco coisas exteriormente compostinhas, mas aprofundadamente da verdadeira face, do verdadeiro sonho. Sobre isto há um dramaturgo americano que diz mais ou menos: que muitas vezes assim se queimam as asas se as asas são de cera, mas que d outra maneira não vale a pena. Eu creio que o sujeito tem razão. Fl. [1]v Escrevi um postal à [N] queixando-me das fotografias e do seu silêncio. A propósito lembrei-me do teu vestido de que gostei muito. Também não fará mal telefonares-me até porque a [N] me disse que a [N] tem estado doente. Não tenho tido correspondência de meus Pais, nem sei quanto tempo vão demorar. A [N] ainda não me res- pondeu, não percebo bem porquê. Queria escrever-lhes sobre a questão das nossas filhas passarem lá um mês, mas só o farei no sabado. Quando me preparava para vir escrever, fui chamado para ir fazer a "tua" salada de cenoura. Já não me lembrava bem, mas socorri-me da imaginação e fiz uns acrescentos por minha conta e risco, aproveitando o vinagre dos pickles que trouxeste. Só há duas hipóteses: ou fica intragável ou de arromba. Ainda não me chegou o livro para começar a tradução, o que me começa a preocupar bastante. Não te disse nada sobre os chinelos. São lindos lindos. Até me dá pena usá-los. É claro que com este requinte todo, o preço tinha de subir. Mas são de facto muito bonitos e bem acabados. Não tenho postais para as nossas miudinhas e hoje também não teria muito tempo. Fiquei encantado com as pinturas e peço-te que lho digas muitas e muitas vezes porque queria que muitas vezes me trouxesses coisas maravilhosas como estas. As miudas estão lindas. A [N] um bocado branquinha: falta de sol? Como estás tu, meu amor? As andanças do emprego? A taquicardia, a ansiedade, tudo isso? E a tua Mamãzinha como vai de saude? Véspera de S João. Chega aqui o ruido de vozes animafdas e alguns estoiros de foguetes. Tenho muita pena de não estar contigo, hoje, no Porto e não te poder mostrar e recordar contigo algumas coisas da minha juventude. Deixavamos as miudas em qualquer sítio e haviamos de nos divertir; eu contar-te-ia como era "no meu tempo", porque eu próprio já não sei como é hoje, há tantos e tantos anos que não passo lá o S João. Sejamos naturais e não desesperemos. Eu sei que um dia me levarás pela mão a descobrir essa [L] que tu própria hoje mal conhecerás; e eu terei que reinventar o meu Porto, rua a rua, para que o aprendas a amar, Mostraremos à [N] e a nós próprios, as suas duas cidades e a [...] sua vila e, à [N], o seu "arranha-ceus" Escreve. Dá muitos beijos às nossas filhas e diz-lhes que as amo muito e que tenho tremendas saudades de brincar com elas. Beija-mas muito. Dá um abraço à tua Mãe. Com amor, [N] Contexto Prisão Palavras Chave Tipo: conselho Suporte Material Suporte:
uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Créditos Transcrição: Mariana Gomes Discorda da nossa leitura? Por favor escreva-nos: cardsclul@gmail.com |
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