FLY2074 Data Referência Arquivística Resumo Local Cartas relacionadas Download XML Download em formato PDF |
Texto Fl. [1]r Peniche, Meu Amor: Vou contemplado estas coisas que me deixaste: o teu cartão e o da [N], a caderneta e a prova da [N] (eu gos-taria muito de ficar com esta prova!), a tua fotografia amouriscada no B identidade... É difícil conciliar este necessidade de intervir na vossa vida (que é a minha, insisto) e isto de estar preso. Tudo parece talvez mais grave, e talvez o seja de facto. E ou se cria uma insensibilidade esgotante e não se pensa, ou... Muitas coisas dependerão do fei- tio, eu sei. Muitas pessoas há que deixam arrastar situações apesar de verem perfeitamente os seus perigos e con- sequências, se não prováveis pelo menos possíveis. Imbuem-se, como dizer? d um optimismo a todo o transe, fecham os olhos e acreditam que "não há-de ser nada"; e como muitas vezes os terrores não se concretizam, daí extraiem gran- des e firmes certezas... Isto vem a propósito de ti, da [N], do Calorífero. De ti: puseste mesmo o problema de não ires de manhã ao emprego para não compensar as horas das lições de estenografia e as horas de estudo que tens de fazer - ou deixas correr essa tosse, esse cansaço, essa insónia (da fadiga?), etc, etc? Do calorífero: já tele- fonaste ao homem do gaz para o ir consertar ou continuas "crente" em que explosões e envenenamentos não são com a tua Mãe, com as miudas, contigo? Da [N]: as lentes e os oculos? Os olhos parados da minha miudinha, o seu olhar de lado, têm-me perseguido. Exagero? Talvez na forma como sinto, que não na importância do facto. Quando fui preso, estive três ou quatro dias sem óculos; lembro as dores de cabeça e o mal estar que disso me advieram, apesar de eu me saber defender (não fixar a vista, só olhar para perto, fe- char com frequência os olhos, etc)... A [N] vê pior do que eu, tem 6 anos, esforça-se por ver e, além de tudo, merece todo o carinho e toda a ternura. Tenho a certeza que tambem sentes assim e que te preocupas e afliges, e, no entanto, reagimos de modo diverso... Segunda-feira telegrafei à [N] pedindo que te informasse da graduação das lentes da nossa [N]: telegrafou-me horas depois a dizer que te enviara a receita (tem cuidado q não se perca). Porque o fiz? Porque admiti que de novo [...] adiasses, contra a tua própria sensibilidade; porque te quis ajudar a vencer as dificuldades que defrontasses. E se não telegrafo ao teu patrão ou ao homem do gaz é porque não posso... Pergunto-me se o compreenderás e não me sei responder... Casamento, resumindo: a) pedi 3a feira para a cadeia tratar do atestado de residência: é facil e parece ser rápido. b) uma vez obtido, e dada a tua falta de tempo, escreverei eu à Conservatoria do R Civil enviando os docu- mentos e procurando que a data seja 2 de Fevereiro. c) Entretanto, terás tu que telefonar à [N] no sentido do apadrinhamento. Eu comunicarei o facto com antecedência aos meus familiares para se quizerem estar presen- tes. Terei também que averiguar do provável "custo" da cerimónia... Fl. [1]v Não sei se te deva mandar a caderneta e a prova da [N] pelo correio - diz-me alguma coisa, com tempo por favor. Insisto em que os comprimidos para o enjoo devem ser tomados com cuidado - pergunta à [N]. Quem é que escreveu e fez aqueles riscos no papel assinado pela D [N]? Tens dado muito cari- nho (mesmo com as mãos frias) à [N] que tanto tem sede do teu mimo? A tua Mãe como está agora, apesar da intoxicação com o calorífero? E tu, minha querida? Eu tenho andado adoentado - já devia estar quando cá vieste. Faringite ou laringite, isto é, a garganta altamente irritada, dores de cabeça, etc. Provavelmente frio que apanhei. Mas não tenho sentido reumático: acho um pouco idiota pensar que é das ceroulas, mas, pelo menos no tempo, as coisas andam associadas. (Sabes que a [N] comprou camisolas destas ao miudo e, ao que parece, desapa- receram-lhe as constipações, etc - mesmo depois das correrias não se fica suado). E com isto tudo, começo a ter roupa a mais... A [N] diz-me que mandou brinquedos para as miudas. O ano está a acabar. É difícil ficar indiferente, apesar de ser uma pura convenção sem qualquer significado cosmológico ou fisico, apesar de apenas se passar de Dezembro a Janeiro. Começa a ter peso esta longa distância de vós - dois anos à vista. A [N] tinha quase só dois anos, a [N] ainda não tinha cinco, tu não... Há 9 anos ainda não nos conheciamos, ainda... É difícil mergulhar nestes balanços e encontrar-lhes o fio: fica-se com as mãos cheias de "encon- tros casuais", quase improváveis, como se tudo se fosse construindo independente e à margem de nós. E, no entanto, sabemos que não é assim, que em momentos decisivos escolhemos, decidimos o que no fundamental, queriamos e o que, no fundamental, não queriamos. Apetece-me de novo pedir que me dês as tuas mãos, as palmas das tuas mãos. Davas-me de novo? Qualquer que seja a resposta, desejo-te um Bom Ano, [N]. A sério que desejo. Também à tua Mãe, às tuas irmãs, aos teus cunhados. ODesejo e formulo o voto secreto e profundo de que sejas feliz neste novo ano, muito. Beija-me com imenso amor as nossas filhas. Beija-me ternamente e com dolorosa ternura os meus olhos da [N] e faz-lhe caricias simples, mas constantes. Diz à [N] que é muito linda e que lhe quero como tu e ela não calculam. Beijos do teu [N] P.S.Agradece logo que possas a prenda dos lenços e escreve! Fl. [1]r P.S - A [N] diz-me que talvez aí vá brevemente [N] Contexto Prisão Palavras Chave Tipo: instruções Suporte Material Suporte:
uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as
faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Créditos Transcrição:
Mariana Gomes
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