1918. Carta familiar de um militar do CEP para os pais. De França para Ourique (concelho). FLY2083

FLY2083
Carta familiar de um militar do CEP para os pais. De França para Ourique (concelho).

Data
13/08/1918

Referência Arquivística
Arquivo Histórico Militar.
Corpo Expedicionário Português, I Divisão, 35ª Secção, Caixa 86, Fólios [1]r-v

Resumo
Carta de um soldado aos pais contando pormenores do seu quotidiano, bem como da batalha de La Lys; justifica o facto de não ter ido de licença até ao momento.

Local
França

Cartas relacionadas
FLY2099  


 Download XML       Download em formato PDF



Autor | Destinatário | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Sobrescrito

Destinatário

Exmo Senhor
[N]
Rua de [L]
[L]
Alentejo


Remetente

Remete
[N]



Texto

Fl. [1]r

França

13 de Agosto de 1918

Meus queridos paes.

Muito estimo que ao receber destas duas linhas
estejam de perfeita saude assim como meus queridos
manos, eu ao fazer d' esta fico bem, felismente.
Vou principiar por lhe contar alguma cousa da minha
vida o que não é custume por ser espressamente prohibido.
Hoje como parte daqui um camaradinha que teve a
dita de arranjar licença para ir a Portugal, aprovei-
tei a ocasião, é êle pôis o portador d'esta carta.
Meus queridos paes. Vou-lhe fazer comprehender
o motivo porque não tenho ido de licença. Até á
data nunca estive n'uma linha de fôgo a combater.
Tenho estado sempre em Depositos onde não me falta
coisa alguma e estou mais livre do perigo, comquan
to que os meus irmãos d' armas têem-se sacrificado o
mais possivel; uma grande parte, nem mais lá
tornam e outra grande parte são prisioneiros dos
alemães e aqueles que escaparam dos grandes com-
bates como aquele de 9 de Abril que deve ficar
na historia, esses são os primeiros a ir de licença
pelo que está decretado e acho bem entendido.

Apesar de eu ter muitas saudades de abraçar
minha familia, tenho que me conformar e con-
hecer, que aqueles que se bateram como liões nos
campos da batalha os quais foram lovados e condecorados
pelos bons serviços que prestaram, têem mais
direito de ir a Portugal primeiro do que eu,
porque enquanto eles espunham o seu corpo ás
balas, passavam fome e dormiam mal, estava
eu á retaguarda muito descançado, onde não
me faltava comer e tinha uma boa cama
Carta no 1.
Fl. [1]v
Como sou muito justiceiro, contra mim falo.
Que tristesa não era para minha familia, um
dia chegar a minha casa com falta de um braço
ó de uma perna? digam-mo que paixão não
era para todos? pôes são esses que vão para
Portugal e eu cá fico, mas antes quero ir mais
tarde e chegar a minha casa como de lá
abalei. Não quero dizer que não tenha
passado trabalhos; mas comtudo, posso-me
dar por felis. Do que corto mais prego é
dos áiroplanos, que todas as noites atacam
a cidade onde eu estou a fazer serviço;
ésta cidade chama-se Havre.
Em principio
tinha grande medo quando havia bonbar-
diamento, hoje nada me assusta: tenho
visto tantas que nada me admira.

Vou-lhe contar o meu emprego atualmente.
Sou vago-mestre: eu é que requesito os
generos aos Inguelezes e é que os vou
boscar com um carro de esquadrão e um
condutor, sendo eu o responsavel de tudo.
Se não sobér o que é, pergunte, que logo lhe
explicam: alem d'este encarrego, tenho outros mais
Por hoje vou terminar pedindo-lhe desculpa
desta massada, pois só lhe digo verdades
para que não estejam em quidados.
Dei muitos abraços aos meus manos, bei-
jinhos ao [N] e ao [N], recomendaçôes
a todos esses homens felises, a toda a nossa
vesenhança e a quem por mim perguntar.

Meus queridos paes recebam uma
viva saudade

d'este seu filho

[N]

P.S.
O bombardiamento continu-a!
que fazer? 'fugir' quem foge é
valente. Onde será a cama? não sei para a frente é que é
o caminho


Texto vertical
Peço-lhe mil desculpas de esta carta ir mal escrita e mal notada: são serviços feitos de nôite e á preça que
de dia não á vagar. Já á mais de meia hora que estão a ralhar comigo, dizendo o seguinte: apaga a luz
que ahi vêem os áiroplanos: neste caso termino a minha carta: 10 minutos depoes chega-me um ao pé
e dis-me: a igreja já está toda em terra, e nós temos que retirar. Calcule meinha mãe a noite que eu
Fl. [1]r
vou a passar; mas, já não estranho, como esta tenho passado centenas délas.; 18 meses não são 18 dias e
portanto tenho obrigação de têr pratica: já não digo corajem porque nestas horas não á nenhum que
não se lembre da mãe. Comtudo peço a minha mãe e meu pae que não desanimem. Estou
convencido que hei de colar tudo e voltar a minha casa paterna sem defeito algum: esperanças em Deus
Se meus paes receberem esta carta, nunca me toquem no assunto: se esta carta fosse aprehendida, já eu
sei a volta que levava: mando-a porque faço confiança no portador / Adeus meus queridos paes e manos

A saudade me mata: depoes que
recebi as fotographias de meus
ante-queridos, ainda
mais me aogmenta
a paixão




Contexto
I Guerra Mundial.



Palavras Chave

Tipo: notícias
Linguística: concordância nominal, clíticos (próclise vs ênclise), artigo definido, concordância verbal, concordância nominal
História: I Guerra Mundial, guerra, serviço militar, feridos, condecorações, louvores, família, batalhas, combates
Sociologia: serviço militar, comunicação




Suporte Material

Suporte: uma folha de papel de carta pautado de 35 linhas escrita em ambas as faces.
Medidas: 320mm × 201mm
Medidas do Envelope: 114mm × 146mm
Mancha Gráfica: sem linhas em branco entre a fórmula de endereço e o início da carta; no envelope está um carimbo que contém: OUVERT / 369 / PAR L'AUTORITÉ MILITAIRE.




Créditos

Transcrição: Mariana Gomes
Revisão: Rita Marquilhas
Codificação DALF: Mariana Gomes
Contextualização: Sílvia Correia




Discorda da nossa leitura? Por favor escreva-nos: cardsclul@gmail.com