1918. Carta familiar de um militar do CEP para os pais. De França para Ourique (concelho). FLY2099

FLY2099
Carta familiar de um militar do CEP para os pais. De França para Ourique (concelho).

Data
15/08/1918

Referência Arquivística
Arquivo Histórico Militar.
Corpo Expedicionário Português, I Divisão, 35ª Secção, Caixa 86, Fólios 1-[4]

Resumo
Carta do filho aos pais dizendo que não se preocupem com ele, porque, apesar de ter estado doente, não irá morrer na guerra, que assim lhe foi lido na sina; critica também o Governo e descreve a saudade que sente.

Local
França

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Autor | Destinatário | Notas | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Sobrescrito

Destinatário

Exmo Senhor
[N]
Rua de [L]
[L]
Alentejo


Remetente

Remete
[N]



Texto

Fl. 1
(1a parte)

França

15 de Agosto de 1918.

Meus queridos paes do coração.

Os meus mais ardentes votos é que ao receber desta minha carta
estejam na posse duma perfeita e felis saude assim como meus queridos
manos, eu bem felismente.

Meus queridos paes.

Em vistas de lhe escrever uma carta hontem á noite a qual não
seguio devido ao portador se demorar mais um dia, torno-lhe a escre
ver outra, hoje com mais vagar. Hontem, como lhe disse na primeira
carta, ouve aqui grande bombardiamento o qual fez muitos estragos
e agumas mortes, mas pela minha parte não ouve novidade.
Eu já sabia que não me acontecia mal, porque tenho mada-
do ler a minha sina e dis-me o seguinte: muito tempo em guerra e
morrer na patria; ahi está o motivo porque eu nunca me preocupo
com estas cousas e estou sempre fixe. Meus queridos paes: em vistas
disto tambem devem ficar satisfeitos e nunca perderem a esperança
de me ver, porque algum dia será; tenho sido felis e hei de ser até
ao fim. O que tive mais á contra fôe a doença que me deixou muito
atrapalhado, mas como adoeço em França, tão bem adoeço em
Portugal, assim o mal venha não á mais remedio que é aceitar-se.

Como esta, esta carta vae por mão propria, vou-lhe dar a
discrição da minha doença, o que não lho podia explicar pelo correio
militar. Estive 45 dias dias no hospital; esse hospital era Inglez
porque na ocasião não avia vága nos hospitaes portugueses; álem
da minha enfelecidade tambem tive muita sorte, pôis fue
tratado com zelo e carinho. As inglezas como enformeiras,
tratavan-me com o mais quidado possivel, o que eu não enco-
ntrava num dos hospitaes portugueses, pelas enformas que
tenho. Nestas ocasiões de forma alguma me podia esquesser
de meus queridos paes, devido á minha situação e de me lembrar
Fl. 2
os trabalhos que passaram para me criar e mais tarde ser robado dos
vossos seios e estar sujeito a sofrer tudo a dtodos os canalhas...
isto é duro! Enfim. A respeito da minha doença, quando
ahi for lhe explico milhor; eram febres e mais algumas cous-
as: escapei porque estou guardado para maiores tormentos.

Vou contar a minha mãe mais um motivo, porque não
tenho ido de licença; não é porque eu não tenha direito, que
já tenho direito a 3 licenças, porque já conto 18 meses de
campanha, mas é outro caso. Em campanha fazen-
se injustiças como se fazem em Portugal, as quais têem-se
que gramar e calar a bôca. Aqui da minha formação
foram muitos sargentos de licença, assim como de
todas as outras e nem mais cá voltaram: nós aqui
não básta temos muito trabalho porque somos poucos,
como tambem não podemos ir de licença por fazer
falta ao serviço. Isto agradese-se ao senhor ministro
da guerra, porque nem só não rende a jente, como
tambem não torna a mandar os que vão com licença:
isto é proprio do governo Portuguez que nunca o fez por
menos; faz do direito torto, e do torto direito. Eu
não falo só por aquele que lá está, falo por todos os outros.
É uma sússia de canalhas que só pençam em robar
e não se lembram daqueles que vivem na amargura
á 18 meses, separados de suas familias e dando a ulti-
ma pinga de sangue pela sua patria. Nós que estamos
em França, somos tão portugueses como os outros que lá
estão; sacraficamos á tanto tempo, equanto que os
outros, estão ahi descançados cheios de alegria e de saude
e nos aqui cheios de mal e de paixão e não á caridade
não á zelo, não á olhos mesercordiosos que vejam estas
cousas. Encontramos aqui ao alado de Inglezes, Franceses
Americanos, Belgas etc etc etc, em nenhum desses
exercitos se vê o que se vê no exercito Portuguez
não é assim que se paga aos amigos da sua patria.
Fl. 3
Pelo geito que vejo e pelo que me dizem, só lá irei para os meses de
Novembro ó Dezembro, não avendo alguma coisa á contar: não
valae a pena estarem a fixar datas para a minha chegada, porque
então ainda mais lhes custa: tenham passiensia e conformen-se
com a sorte que Deus me deu: convensam-se que o mais projudi-
cado sou eu e com tudo eu cá vou indo. As horas que mais sôfro
são aquelas em que me lembra minha familia, minha mossidade
e liberdade lib Nessas horas até quido de estalar de paixão,
vingo-me em chorar assim como muitos meus colegas, mas não
temos outro remedio que é disfarçar-mos uns com os outros.
No dia em que recebi as voças fotografias, não calculam o abalo
que me deu, ao ver aqueles que tantos beijos me deram e tantos
tormentos passaram para me criar e encontrar-me lonje e
muito lonje, onde nem o menos lhe posso mandar dizer o que
sinto: por este momento posso eu calcular o que será, um dia
que tenha a dita de vos abraçar: ó como serei feliz.
Ourt Outro assunto. Peço a meus paes que nunca ponham
selos nas cartas que me escrevem, porque vêem cá têr da
mesma forma, portanto evitam essa despesa. Eu não
lhe tinha já mandado dizer, porque não me deixavam
seguir a carta. Tãobem lhe peço que não estejam muito
tempo sem me escrever, pôis não calculam; o tempo que
não recebo correspondencia, é o que mais me custa: eu
escrevo sempre que possa: mando-lhe dizer pouca cousa
porque não lhe posso dizer mais. - A respeito da
encomenda de meis, até á data não recebi, assim
receba lhe mando dizer. Já não quero que me mandem
mais nada, para encómados baste. Se for algum dia
de licença, felismente tenho o dinheiro para as passa-
jens e para comprar um fato á paisana, para atrave-
ssar a Hespanha. Aqui nunca se me acabou dinheiro.
Se lhe mandei pedir algum a meus paes, fôe para me
tratar quando sahi do hospital, que se não fizesse um
tratamento especial, não tinha resestido.
Fl. [4]
Peço a meus queridos paes que assim estas cartas recebam me
escrevam e me mandem dizer o seguinte. Receber-mos
as duas cartas grandes: assim já eu fico sabendo que
receberam: não quero mais explicações pode avêr
alguma acusação. - Por hoje vou terminar esperando
que me escrevam muitas veses. Tãobem lhe peço desculpa
das cartas irem mal escritas, pôis são trabalhos feitos
de nôite que de dia não á vagar.

Muitos abraços aos meus manos, beijinhos ao [N]
e ou [N]; muitas recomendações a toudos os meus tios
e tias, primos e primas, a todos os rapases e raparigas
do meu tempo, a todas as pessoas que por mim pergu-
ntam e a toda a nossa vesenhança.

Meus queridos paes recebam uma vid
viva saudade e um grande Abraço

deste seu querido filho que jámais
os esquesse e lhe deseja pedir a benção

[N]

P.S.
A minha direção é a seguinte.
[N] no [D] sargento no [D]
de Administração Militar. C.E.P.
D.B.A.P. [D] C/o B.E.F.
França

Façam como têm feito que
vem em boas condições
Adeus até um dia
mais vale tarde que nunca.



Contexto
I Guerra Mundial



Notas
Esta carta aparece parcialmente trancrita em:
Marques, Isabel Pestana (2008), Das Trincheiras com Saudade - A vida quotidiana dos militares portugueses na Primeira Guerra Mundial, Lisboa, A Esfera dos Livros, pp.241-242, 251.



Palavras Chave

Tipo: notícias
História: I Guerra Mundial, serviço militar, guerra, censura, uniformes, campanhas, saúde, hospitais , mortos, ataques, licença, família
Sociologia: serviço militar, saúde, comunicação, religião, política




Suporte Material

Suporte: uma folha de papel de carta pautado de 34 linhas dobrada e escrita em todas as faces; no envelope está carimbado: OUVERT, 369, Par l' Autorité Militaire.
Medidas: 309mm × 199mm
Medidas do Envelope: 146mm × 114mm
Mancha Gráfica: uma linha em branco entre a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Mariana Gomes
Revisão: Rita Marquilhas
Codificação DALF: Mariana Gomes
Contextualização: Sílvia Correia




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