1970. Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa]. FLY1040

FLY1040
Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa].

Data
20/10/1970

Referência Arquivística
N.A.
Arquivo Privado, Arquivo Privado, FLY1040, Fólios [1]r-v

Resumo
O autor aconselha a mulher a encarar com seriedade os seus problemas de saúde. Mostra-se preocupado com a educação das filhas e dá conselhos sobre a conduta da destinatária na sua relação com os familiares por afinidade. Comenta leituras que fez (Camilo e Pessoa) e que quer fazer (Odete Esteves de Carvalho e Aníbal Cavaco Silva). Considera a hipótese de passar a ler livros requisitados numa biblioteca. Finalmente, reflete sobre a última visita que recebeu da destinatária.

Local
Peniche

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Autor | Destinatário | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Peniche,

20. Outubro. 70

Querida [N]

Continuo a ouvir-te tossir, continuo a ver-te desprezar a necessidade de te tratares muito a sério. Há muito que vens desleixando (diz lá se não é
verdade!), sem apurares com realismo o que é que afinal tens e o que é que não tens. É uma atitude sem pés nem cabeça, tremendamente infantil e ridícula.
As mulheres são mortais, tu és mulher, logo tu és mortal - é um silogismo indubitável; não te julgues fora destas contingências de doenças e de sérias com-
plicações e de mortes: ou cais na palermice de julgar que essas coisas só sucedem com as outras pessoas? Tosses, suas, sentes-te esgotada; tens pro-
blemas cardíacos, de assimilação, nervosos, etc, etc: não vês que não podes deixar as coisas correrem até que se crie qualquer situação irremediável?
No fundo, é uma posição primitiva, fatalista, anticientifica, etc, etc e ridícula. A um esforço - para toda a gente esgotante - de escrever à máquina,
ao trabalho que as miudas dão, às poucas horas de repouso, juntas a teimosia em almoçar "muito fino", mas muito mal (e caro!), esquecendo-te
das percentagens elevadissimas de tuberculoses, etc a que tanta "fineza" conduz. Parece que te estou a ralhar? Pois estou mesmo. Não te vejo
consciente da possível gravidade do estado de saude, reagindo com energia, receando essas ridículas inibições de comer no emprego, etc, etc. Enfim,
[N], não sei que te diga, mas fiquei assustado. Por ti, pelas miudas que precisam até ao infinito de ti. (E também por mim, mas não vale a pena agora
embrenhar-me por aqui). Muito a sério, [N], almoça em condições, com regularidade, com sensatez; precisas de te alimentar bem a todas as refeições, sobretudo ao
almoço
. Vai ao médico, faz as análises todas, trata-te! Manda-me dizer o que se passa, em pormenor - compra um bloco ou escreve em papel de máquina
que é para não teres que te limitar a essas cartas compradas nos quiosques que só têm meia duzia de linhas...

As nossas filhas precisam de ti com saude e boa disposição para as "aturares". Estás pouco tempo com elas, mas nesse pouco tempo tens de lhes trans-
mitir todo o teu amor e todo o meu. Agora já não tens a desculpa de estares sempre a cuidar delas. Tens que sentir em ti o carinho, a ternura, a compreensão, o in-
condicional amor. Tens que lhes tornar visível e palpável o intenso e inesgotável e maravilhoso encanto que provocam só por existirem; a alegria que tens por tê-las,
vê-las, beijá-las. Coisa alguma pode substituir essa presença tua, de mãe. Em muitos aspectos, e por toda a vida, dependerão da coragem, da segurança, do apoio, da
confiança e da alegria que agora lhes deres. Encoraja-me a [N] tão boa, tão boa realmente, tão generosa, tão amiga de nós, tão cuidadosa com a [N], tão carinhosa e
tão sedenta de carinho, tão expontânea e já tão ferida. Incute na [N] a confiança em si-mesma, a sensação de ser amada, de ser encantadora e linda, porque, apesar
daquela prosápia toda, ainda é mais indefesa e susceptível que a [N]. Brinca com elas sem a ideia sofisticada de corrigires o que é natural nelas, puro e são, sem
medo que se ache "mal" ou não seja de "bom tom": manda à fava essas teorias! Educar não é torcer ou constranger ou inibir ou tornar pouco natural. Educar
é sobretudo estimular o pleno desenvolvimento das faculdades naturais, da sensibilidade natural, do temperamento natural, aperfeiçoando-os sem atropelos, sem papões,
sem complexos. Ama-as muito, encoraja-as muito, exprime-lhes em cada momento, mesmo ralhando, o imenso afecto que lhes temos.

Um problema: como é que a [N], de 4 anos, vai para a aula da irmã, em vez de estar junta com as outras crianças da sua idade, participando
no ensino pré-infantil adequado ao seu desenvolvimento mental, psicologico, emotivo, etc? Não sei se essas estadias à beira da [N] são ocasionais, pouco demo-
radas ou se são norma habitual. É que, em princípio, isso é contraproducente, anti-pedagógico para a criança que é prematuramente metida num meio infantil
mais evoluido, em que se sente isolada, em que não se desenvolve de acordo com a idade e gradualmente, em que está inferiorizada, diminuida, deslocada.
Fl. [1]v
Ora isso é susceptível de traumatizar a nossa [N] - sentir-se maisacentuar-se a timidez, inibir-se pela comparação, etc - que já tem a tendência natural para se medir pela
[N]. Peço-te que me descrevas melhor esse colégio: estou a ver muitos alunos, muito misturados, coisa que não compreendo. Aliás, sugiro-te que coloques
com franquesa e naturalidade a questão à professora: será adequado para a [N] estar presente, com frequência, na 1a classe? Não a poderá isso inferiorizar? Não
lhe impede isso a participação no ensino apropriado à sua própria idade? Logo ouviremos o que nos diz, e é depois fácil controlar pela [N] se a
resposta corresponde a preceitos correctos. Não me quero esquecer: elucida-me sobre o seguinte: a mensalidade que terá de se pagar no início de
Dezembro (com ferias, Natal, etc) é igual à dos outros meses? E diz-me o no dos sapatos que a [N] precisa.

Estive a ecrever à [N], procurando justificar (doença, novo emprego, partida da [N], não sentires a importância de o fazer) o não teres
aparecido em casa da [N], antes da ida para Londres. Mas quis também tornar claro quanto também a mim me intristeceu que não tivesses lá ido
e quanto me parece que devias tê-lo feito, apesar de tudo. Tu própria, aliás, o reconheces: e seria ingratidão não o reconheceres, insensibilidade também, perante o esforço real que a [N] e a Mana têm feito
para nos ajudar, para ajudar as nossas filhas, para te ajudar. Pareceu-me obrigatório dizer-lho porque é verdade e para que não possa duvidar que não teres
aparecido resultou apenas d um desleixo, digamos, natural, não ofensivo, impensado, que não reflecte o profundo afecto que eu lhes tenho. Dava-lhe noticias
de ti, das nossas miudinhas, de mim. Creio bem que não terás qualquer discordância desta carta. Mas diz o que tiveres a dizer.

Já tenho comigo o Camilo e o Pessoa. Ainda não consigo entender-me com este Pessoa, porque a disposição é muito diferente; ainda não
encontro com facilidade o que quero; mas já vi que me vou deliciar porque há muitos poemas que ainda não conheço. Mas quero sobretudo falar-te
da biblioteca. Conviria veres bem a questão, colocando-a com clareza aos próprios bibliotecários, nos aspectos gerais e, em concreto, no prazo. Porque teria
uma enorme importância e interesse pra mim, como é evidente, se pudesse recorrer a ela. Para isso convinha-me também saber que tipo de obras tem, quanto
tempo demora a que os livros publicados sejam postos à disposição dos leitores, que publicações recebe, como está organizado o catálogo (por autores, por assuntos, por
colecções, etc) para eu saber que elementos te hei-de fornecer para requisitares um livro que me interesse. Por exemplo, em início de 1969 foi publicado um livro
sobre a repartição do rendimento nacional, da autoria de Odete Esteves de Carvalho e outro autor que não sei. Creio que é do Fundo de Desenvolvimento da Mão de
Obra. Será possível arranjares? E o Mercado Financeiro Português, de Anibal Cavaco Silva? É evidente que não quero impedir-te de leres, coisa que con-
sidero fundamental; se só podes requisitar uma obra então fica tudo sem efeito, pois deves mas é requisitar para tu leres... De qualquer modo, permiti-
rá lermos ambos algumas obras e depois conversaremos sobre elas - o que já não será nada mau.

Gostei de conversarmos no domingo; conseguimos ajudar-nos a compreender-nos num plano de sinceridade e de naturalidade que me encanta.
É nesta base de desassombro, confiante, que podemos tornar sólidos, muito sólidos, os velhos (porque são velhos!) liames e laços e coisas que, mesmo aparen-
tando às vezes desunir-nos, [...] nos unem. Quero crer que é uma base que realmente, sem fugas ou fingimentos, conseguimos edificar. É porque
o penso que te dizia que compreendia muitas coisas, quase todas; que as poucas que me magoam (e muito) e não compreendo, são as que
atingem, danificam ou sapam [...] esta base, para além de tudo, tão corajosa e tão intima. Mas isso são longas histórias que me limito
a propor às tuas meditações socráticas. (É de Sócrates que o "conhecer-se a si mesmo" é a base de todo o conhecimento; não é grande ideia, mas
é a ideia que se quer sublinhar quando se referem "meditações socráticas"...). [...]

Muitos beijos, muitos, muitos, nossas filhas - que vou ver se arranjo postais para lhes escrever. Abraços tua Mãe e tuas irmãs e toda a família.

Muitos beijos para ti.

Teu

[N]

P.S.

Fl. [1]r
PS: Soube que minha Mãe deu de novo grande queda. Já te tinha escrito a carta. Não sei gravidade situação. Pedi para casa, no-
ticias concretas. Põe de parte "tudo" e, peço-te telefona ou [...] telegrafa no sentido sentirem tua presença amiga e indispensável
[N].



Contexto
Prisão



Palavras Chave

Tipo: conselho
História: prisão
Sociologia: família, saúde, educação, cultura




Suporte Material

Suporte: uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Medidas: 275mm × 211mm
Mancha Gráfica: sem linhas em branco entre a fórmula de endereço e o início.




Créditos

Transcrição: Leonor Tavares
Revisão: Mariana Gomes
Codificação DALF: Leonor Tavares
Contextualização: Ángel Rodríguez Gallardo




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