1971. Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa]. FLY1041

FLY1041
Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa].

Data
25/09/1971

Referência Arquivística
N.A.
Arquivo Privado, Arquivo Privado, FLY1041, Fólios [1]r-v

Resumo
O autor aconselha a destinatária sobre a melhor forma de se mentalizar e comportar num momento em que se separou de uma das filhas, que foi viver com outros familiares. Comenta a maneira de ser da sua própria família. Anuncia já poder devolver as obras de Guimarães Rosa que tinha recebido na prisão.

Local
Peniche

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Autor | Destinatário | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Peniche,

25. Setembro. 1971

[N]:

Como estás tu?

Conheci a carta que escreveste à [N] e senti expressa necessidade de te escrever. Agradecer-te,
[N], a compreensão e sensibilidade. Agradecer-tas muito, e ainda muito.

Não sejas tola, não se trata de forma alguma de te "estragar a vida" ou coisa semelhante. Tu sabes pre-
feitamente que não é nada disso, que eu não seria capaz de o fazer, que eu me oporia, tanto quanto pudesse apesar de
preso. Não vejas as coisas assim, viradas contra ti: seria injusto!

Tu própria verás que a solução encontrada é uma boa solução para a [N] e para nós ambos. Agora é
normal que te custe, nesta fase primeira, sobretudo porque tenderás a exagerar e a dramatizar, a preconceber as coisas
como as coisas nunca serão. Depois irás verificando uma realidade bem diferente da visão enegrecida que agora te possui.
Lisboa é a meia dúzia de horas do Porto (e vice-versa), a [N] manterá todo o amor e toda a ternura e todo o
respeito por ti. E tu própria poderás sempre, mas sempre, comprovar o que se for processando, as reacções da [N],
o seu desenvolvimento, a sua educação, o seu equilíbrio, a sua vida.

E se houver motivos para isso - quaisquer motivos - a [N] voltará. Assegurei-te solenemente
que assim seria. E tu sabes, [N], que é das tais coisas que me são sagradas; tu sabes, [N], que o cumpri-
rei inflexivelmente, contra tudo, contra mim.

No resto, estou de acordo contigo. E eu próprio sublinhei à [N] quanto me pa-
reciam acertados e justos os teus concelhos e as tuas recomendações: que a [N] não possa pensar que foi rejeitada
por ti ou forçada por mim; que a [N] se convença que ficou porque quis ficar ela própria; que estejamos atentos,
com isenção e sem ideias preconcebidas, ao seu comportamento, avaliando-o com lucidez. Velar-se-á por isso, [N]

Para já, a [N] ficará no Porto este ano lectivo, dando-se ao facto um ar natural e
sem tensões, sem que nós ambos (os pais) lhe apareçamos divididos sobre ela. Incutindo-lhe a ideia (aliás, verdadeira)
que o pai está preso, que a mãe trabalha muito, que a Avó [N] é doente e velhinha, que ela está ali a estudar, a
crescer e que ela, [N], gostou de ficar. E todos estaremos atentos, tu também, empenhados até ao fundo do coração
na [N] acima do resto.

Entretanto, tu estabilizarás vários aspectos da tua vida, a mudança de casa que terás de
Fl. [1]v
fazer (disseste), o emprego, etc, etc. serão milhentas coisas a absorver-te. E, em muitos aspectos, será uma grande diminui-
ção de trabalho para a tua Mãe, de preocupações diárias para ti (e também para mim). Mas não haverá coisas definitivas
nem irremediáveis. Sejamos naturais, sensatos; não dramatizemos, não exageremos. Tu verás, acredita [N], como te
falo com verdade.

Procurarei manter-te - e que te mantenham - sempre ao corrente do que se passa. Com objectividade e escrúpulo.
(A propósito, não te esqueças de me mandar a tua nova direcção, logo que e se mudares).

Falemos agora da [N], da doce [N]. Eu gostaria que a miudinha continuasse numa escola infantil; far-
lhe-á bem, conviverá com outras crianças, desenvolve-se. Não sei nem a tua opinião nem os prolemas económicos que se levantam
contra isto. Quero continuar a ajudá-la, a acompanhá-la, a amarmo-nos muito. Porque a amo muito. Diz-me com à vontade
e franqueza a situação existente para eu ver, como no ano passado, o que se poderá fazer. É muito importante para
mim, [N]. Nem sabes quanto...

Tu conheces a existência de questiúnculas ou questões (nem eu sei bem) na minha familia. Não vale a
pena pormenorizar, és capaz de conhecer os detalhes melhor do que eu, sobretudo nos aspectos mais recentes. São pro-
blemas delicados, como compreendes. Às vezes - geralmente temporariamente, embora com duração variável - criam-se
desencontros ou atritos destes. Tu sabes como estas coisas são, aliás, bem vulgares. Eu quero pedir-te, [N],
o favor de não contribuires para que se agravem: não estou a referir-me a nada de preciso ou de concreto; estou
apenas a pedir-te que sejas precavida. Às vezes, involuntariamente, mesmo sem te dares conta, se não es-
tivesses prevenida e atenta, poderia acontecer.

Como está a tua saude? Os problemas do teu emprego? Fiquei contente quando, já no mês passado, soube
que acabaras por não desistir; não sei se a nossa conversa de Julho contribuiu alguma coisa pra essa decisão que considero a
unica acertada, mas, de qualquer modo, alegrei-me.

As tuas chatices?

Eu por cá vou estando. Conta comigo sempre.

Abraço-te.

[N]

P.S.
Ps - Não sei como te devolver estes livros do Guimarães Rosa que já li. Sugeres alguma coisa? Se houver
qualquer pressa, não hesites em dizer-me porque tos enviarei mesmo pelo correio.
[N]



Contexto
Prisão



Palavras Chave

Tipo: conselho
História: prisão
Sociologia: família, educação




Suporte Material

Suporte: uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Medidas: 275mm × 211mm
Mancha Gráfica: sem linhas em branco entre a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Leonor Tavares
Revisão: Mariana Gomes
Codificação DALF: Leonor Tavares
Contextualização: Ángel Rodríguez Gallardo




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