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Texto Fl. [1]r
Peniche, Meu Amor: Tantas coisas ainda a dizer-te e tão pouco espaço e tão poucas condições. Mas não desisto de romper esta dificuldade de convívio, mesmo se continuo àespera da... tua resposta à minha carta de 3 de Fevereiro do corrente ano. Toma nota para não te esqueceres. Já escrevi hoje a meu Pai e à [N]. Não é fácil isto de relevar a ternura e a amizade que se tem pelas pessoas, para além de tudo sem cair no servilismo, víncan- do a personalidade que nos é própria, defendendo o que se reputa justo. Com meu Pai há sempre o perigo dum choque vivo de concepções de vida ou de sentimentos se pessoa- lizar, esconder e desfigurar os laços afectivos que nos unem; somos em muitas coisas tão parecidos que nos tendemos a impor - embora naturalmente (é meu pai, é mais velho, etc) isso surja mais da sua parte. É uma longa e longa história de incidentes que nos vão desgostando e logo vamos esquecendo porque ambos esquecemos com fa- cilidade e com facilidade conseguimos desprendermo-nos de pequenas feridas, no esforço muito isento de compreender os outros, porque essas qualidades temos nós. Falo a meu Pai na vossa visita, com pormenores das miudas, na tua promessa de escrever regularmente desde que tenhas resposta, etc. Sei que meu Pai es- tá muito ligado às miudas, especialmente à [N], e acho que temos a estricta obrigação de perceber a sua saudade dela e de o acarinhar. 76 anos são 76 anos! A [N] é outra coisa. Escreveu-me uma carta muito dolorida: está nitidamente e muito abalada com o aborto, derrotada pela perda do filho que sonha, com a sensibilidade em carne viva. Daí acusar-me (ou nos), embora veladamente, de nada lhe termos escrito para que sentisse que também "vivemos um pouco as suas dores e as suas chatices". Sofre e é mimalha! É compreensível, merece realmente o nosso carinho e a nossa ajuda no periodo dificil que atravessa. A propósito falo-te da tua irmã. Fiquei a pensar. É tua irmã, sinto-a um pouco minha irmã também. É preciso encontrar a forma acertada de a ajudar. Não a ajuda nada, neste momento, a ideia que não está doente e é mesmo preocupante. Há dois preconceitos generalizados sobre doenças de foro psiquico: um tendente a fazer delas uma "coisa" de exterior à consciência do doente, enfronhando o sujeito no seu umbigo (a infância, o pai, a mãe, o sexo, isto e aquilo); outro, a de que essas coisas são "fita", "teatro", unicamente dependentes da vontade do sujeito. O primeiro conduz a tratamentos exaustivos, que desviam dos autênticos problemas, jogando cada vez menos a consciencia e a vontade do doente; o outro conduz ao desprezo de reais situações de doença e reflecte um preconceito anti-cientifico e até mistico da independencia indcondicionada dos fenómenos psíquicos. Em todos os casos importa mostrar o papel decisivo da consciencia e da vontade do próprio. Mas isso não quer dizer que não haja situações em que as reacções e o comportamento não dependem já inteiramente do próprio, em que o equilibrio psiquico atingiu pontos de rotura, perdendo-se o dominio de multiplos aspectos da personalidade e do sistema nervoso e reativo, associado geralmente a elevados niveis de es- gotamento fisico. Em tais situações, o médico tem uma função fundamental e decisiva. Por um lado, diagnosticando o tipo e a origem da doença e o [...] estádio atingido por ela; depois orientando o doente para uma consciencilalização dos próprios problemas (e neste sentido tem sempre um certo papel de confidente); e sobretudo determinando o tratamento (medicamentoso, sono, etc) que permita ao doente restaurar um mínimo do seu equilibrio, recuperar energias, capa- cidades reactivas, etc - base imprescindível para que possa por si enfrentar os próprios problemas, sair do círculo vicioso em que tombou. Digamos, torna possí- vel que a vontade e a consciência do doente assumam o papel decisivo que sempre tem de assumir. Um exemplo ilustrativo: um sujeito sofre um choque emocional, deixa de dormir, enerva-se, etc. É natural; é justo dizer-lhe que terá de reagir por si próprio, adaptar-se à situação gerada pelo choque sofrido, vencê-la, etc; mas, nalguns casos, a insónia debilita-o a tal ponto que dificulta ou impede a reacção, a adaptação, etc. O problema tende a Fl. [1]v avolumar-se e a mudar de natureza. É cegueira, em tal caso, desprezar a ciência médica que permite combater eficaz e facilmente a insónia, precisamente para recobrar energias, reencontrar o equilíbrio, etc, em suma, recuperar o comportamento normal. O exemplo é muito simplista, mas mostra o que quero dizer. A vossa irmã tem necessidade de tomar um conjunto de decisões difíceis, que impõem uma consciência lúcida de si propria e das coisas. Não o poderá fazer - seja qual for o sentido em que o venha a fazer - sem recuperar um minimo de equilibrio nervoso e fisico, enquanto não romper um circulo vicioso de problemas - - ansiedade - angustia - indecisão - esgotamento fisico - problemas - angustia - indecisão - etc, circulo que não se fecha mas se vai tornando crescente, como uma bola de neve. Os elos a quebrar é, por um lado, vencer o esgotamento nervoso e físico e, por outro, consciencializar os problemas em todos os seus aspectos. Sem isso, decidir é um acto gratuito ou desesperado ou louco. Há o perigo de ser "envolvida" pelo próprio tratamento? Há, mas também dependerá do médico que souber escolher. O [N] - não! Um [N], sim! Em minha opinião (e amigavel conselho) devias ter uma conversa séria com a tua Irmã, tipo: "Vamos lá a ver o que há e o que há agora e aqui a fazer imediatamente. As coisas não se re- solvem todas de uma vez. Vamos por partes e vamos lá ver por onde começar a sério". Sinto, pressinto melhor, que é importante impedir a tua Irmã e de se enrolar numa bola de neve de desacertos e erros, de desesperos e fugas que fazem passar as horas, mas agravam os reais problemas, a instabilidade, o descontentamento de si própria, etc. Estás - julgo-o convictamente - em condições de ajudar a tua irmã, melhor do nin- guém. Não podes substimar a ajuda que está nas tuas mãos dar-lhe. Quis dizer-to mesmo com prejuízo de coisas outras que queria dizer-te. Decididamente gostei dos postais para as miudas; das reproduções só de duas (desenhos Degas). Vê- se me arranjas mais (não há colecção?) dos que tem uma historia em verso (trouxeste-me dois, azuis com letras e desenhos a branco). Quando tiveres ocasião ou vagar, lembras-te? Já muito comprimidamente: peço-te encarecidamente que compres o boneco que a [N] pediu (palhaço de corda a dar saltos: onde é que ela teria visto isto? O facto é que existem mesmo). Sensibilizou-me o reparo da [N] sobre os feltros para a [N] e nada para ela. Não tem sentido eu dar voltas para comprar o boneco que me é impossível arranjar aqui. Dá-lho como se tivesse sido enviado por mim pelo correio. Considero isto importante: apelo para a tua compreensão e sensi- bilidade. Ao mesmo tempo, compra um livrinho de histórias para a [N]: para não ficar agora ela a chuchar no dedo... O resto disto, dos postais compra- dos e a comprar, dos cotovelos da camisola, da escova de dentes comprada, das peúgas compradas e de qq outra coisa q me tenha esquecido mencionar, diminuis ao dinheiro q minha irmã me mandou e depois entregas-me ou envias-me o resto, se dele não precisares evidentemente! (Eu desisti por agora do conserto dos oculos, porque vou-me arranjando com os que tenho.) Já agora compra-me 3 Sabonetes Glyce Ach Brito. Não queria esquecer-me de te meter um empenho para que "fantasies" ou "mascares" a [N] para a festa do colégio. Falo nisso a meu Pai, mas já não deve ir a tempo dele "intervir". Ela vive - com toda a mimalhice de que tu a impregnas - o problema sentidamente. A miudinha já tem excessivas coisas que a dis- tinguem das outras, que devemos evitar-lhe mais. É evidente que se fôr questão de dinheiro, avança e diz-me quanto é diz-me que eu comprometo-me solenemente a arranjá-lo. E com tudo isto ainda não te perguntei por ti, eixo disto tudo, subjacente a isto tudo e só aparentemente omitida. Tive que me limitar ao que considerava mais imediato. Sábado, se tiver disposição, escreverei; e sobretudo se tiver recebido essas cartas rascunhadas, tuas: porquê, mas porquê? Compreende que te amo e que preciso das tuas cartas para além, muito para além da estilistica! (Que peneiras no meio disto!) Conta-me das miudas e de ti. Como é que as [...] miudas vêm da escola? Como é que vão? Responde-me às perguntas sobre como é isto, etc. Abraços à tua Mãe e à tua Irmã. Muitas meiguices e beijos às miudas. Com amor, beijo-te [N] P.S.Ps o tabaco de cachimbo não esqueças que eu prefiro mesmo o "branco" (caixa branca). Por favor, diz-me quando fazem anos a [N], a [N] e o [N] [N] Fl. [1]r PS: Estava para mandar a meu Pai uma foto da [N] das tiradas pela tua irmã. Mas só tenho duas, e além disso, agradava-me muito mais que fosses tu a enviar-lhe uma! Fazes mesmo isso? Confio que sim! [N] Contexto Prisão Palavras Chave Tipo: conselho Suporte Material Suporte:
uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Créditos Transcrição: Ana Guilherme Discorda da nossa leitura? Por favor escreva-nos: cardsclul@gmail.com |
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