1971. Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa]. FLY0008

FLY0008
Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa].

Data
16/02/1971

Referência Arquivística
N.A.
Arquivo Privado, Arquivo Privado, FLY0008, Fólio [1]r-v

Resumo
O autor, analisa, um a um, os membros da sua família. Com quem se demora mais é com a irmã da destinatária, sua cunhada, cuja doença psíquica lhe justifica uma série de reflexões e de conselhos. Preocupa-se muito com as filhas e com a possibilidade de não estarem a ter uma infância normal. Termina com uma série de encomendas, umas para si prório, porque lhe fazem falta na cadeia, outras para serem mandadas em seu nome enquanto presente.

Local
Peniche

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Autor | Destinatário | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Fl. [1]r

Peniche,

16. Fevereiro. 1971

Meu Amor:

Tantas coisas ainda a dizer-te e tão pouco espaço e tão poucas condições. Mas não desisto de romper esta dificuldade de convívio, mesmo se continuo à
espera da... tua resposta à minha carta de 3 de Fevereiro do corrente ano. Toma nota para não te esqueceres.
Já escrevi hoje a meu Pai e à [N]. Não é fácil isto de relevar a ternura e a amizade que se tem pelas pessoas, para além de tudo sem cair no servilismo, víncan-
do a personalidade que nos é própria, defendendo o que se reputa justo. Com meu Pai há sempre o perigo dum choque vivo de concepções de vida ou de sentimentos se pessoa-
lizar, esconder e desfigurar os laços afectivos que nos unem; somos em muitas coisas tão parecidos que nos tendemos a impor - embora naturalmente (é meu pai, é mais
velho, etc) isso surja mais da sua parte. É uma longa e longa história de incidentes que nos vão desgostando e logo vamos esquecendo porque ambos esquecemos com fa-
cilidade e com facilidade conseguimos desprendermo-nos de pequenas feridas, no esforço muito isento de compreender os outros, porque essas qualidades temos nós.
Falo a meu Pai na vossa visita, com pormenores das miudas, na tua promessa de escrever regularmente desde que tenhas resposta, etc. Sei que meu Pai es-
tá muito ligado às miudas, especialmente à [N], e acho que temos a estricta obrigação de perceber a sua saudade dela e de o acarinhar. 76 anos são 76 anos!

A [N] é outra coisa. Escreveu-me uma carta muito dolorida: está nitidamente e muito abalada com o aborto, derrotada pela perda do filho que sonha, com
a sensibilidade em carne viva. Daí acusar-me (ou nos), embora veladamente, de nada lhe termos escrito para que sentisse que também "vivemos um pouco as suas
dores e as suas chatices". Sofre e é mimalha! É compreensível, merece realmente o nosso carinho e a nossa ajuda no periodo dificil que atravessa.

A propósito falo-te da tua irmã. Fiquei a pensar. É tua irmã, sinto-a um pouco minha irmã também. É preciso encontrar a forma acertada de a
ajudar. Não a ajuda nada, neste momento, a ideia que não está doente e é mesmo preocupante. Há dois preconceitos generalizados sobre doenças de foro psiquico:
um tendente a fazer delas uma "coisa" de exterior à consciência do doente, enfronhando o sujeito no seu umbigo (a infância, o pai, a mãe, o sexo, isto e aquilo); outro,
a de que essas coisas são "fita", "teatro", unicamente dependentes da vontade do sujeito. O primeiro conduz a tratamentos exaustivos, que desviam dos autênticos problemas,
jogando cada vez menos a consciencia e a vontade do doente; o outro conduz ao desprezo de reais situações de doença e reflecte um preconceito anti-cientifico e até
mistico da independencia indcondicionada dos fenómenos psíquicos. Em todos os casos importa mostrar o papel decisivo da consciencia e da vontade do próprio. Mas
isso não quer dizer que não haja situações em que as reacções e o comportamento não dependem já inteiramente do próprio, em que o equilibrio psiquico atingiu
pontos de rotura, perdendo-se o dominio de multiplos aspectos da personalidade e do sistema nervoso e reativo, associado geralmente a elevados niveis de es-
gotamento fisico. Em tais situações, o médico tem uma função fundamental e decisiva. Por um lado, diagnosticando o tipo e a origem da doença e o [...]
estádio atingido por ela; depois orientando o doente para uma consciencilalização dos próprios problemas (e neste sentido tem sempre um certo papel de confidente);
e sobretudo determinando o tratamento (medicamentoso, sono, etc) que permita ao doente restaurar um mínimo do seu equilibrio, recuperar energias, capa-
cidades reactivas, etc - base imprescindível para que possa por si enfrentar os próprios problemas, sair do círculo vicioso em que tombou. Digamos, torna possí-
vel que a vontade e a consciência do doente assumam o papel decisivo que sempre tem de assumir. Um exemplo ilustrativo: um sujeito sofre um choque
emocional, deixa de dormir, enerva-se, etc. É natural; é justo dizer-lhe que terá de reagir por si próprio, adaptar-se à situação gerada pelo choque
sofrido, vencê-la, etc; mas, nalguns casos, a insónia debilita-o a tal ponto que dificulta ou impede a reacção, a adaptação, etc. O problema tende a
Fl. [1]v
avolumar-se e a mudar de natureza. É cegueira, em tal caso, desprezar a ciência médica que permite combater eficaz e facilmente a insónia, precisamente para
recobrar energias, reencontrar o equilíbrio, etc, em suma, recuperar o comportamento normal. O exemplo é muito simplista, mas mostra o que quero dizer. A
vossa irmã tem necessidade de tomar um conjunto de decisões difíceis, que impõem uma consciência lúcida de si propria e das coisas. Não o poderá fazer - seja qual
for o sentido em que o venha a fazer - sem recuperar um minimo de equilibrio nervoso e fisico, enquanto não romper um circulo vicioso de problemas -
- ansiedade - angustia - indecisão - esgotamento fisico - problemas - angustia - indecisão - etc, circulo que não se fecha mas se vai tornando crescente,
como uma bola de neve. Os elos a quebrar é, por um lado, vencer o esgotamento nervoso e físico e, por outro, consciencializar os problemas em todos
os seus aspectos. Sem isso, decidir é um acto gratuito ou desesperado ou louco. Há o perigo de ser "envolvida" pelo próprio tratamento? Há, mas também
dependerá do médico que souber escolher. O [N] - não! Um [N], sim! Em minha opinião (e amigavel conselho) devias
ter uma conversa séria com a tua Irmã, tipo: "Vamos lá a ver o que há e o que há agora e aqui a fazer imediatamente. As coisas não se re-
solvem todas de uma vez. Vamos por partes e vamos lá ver por onde começar a sério". Sinto, pressinto melhor, que é importante impedir a tua
Irmã e de se enrolar numa bola de neve de desacertos e erros, de desesperos e fugas que fazem passar as horas, mas agravam os reais
problemas, a instabilidade, o descontentamento de si própria, etc. Estás - julgo-o convictamente - em condições de ajudar a tua irmã, melhor do nin-
guém. Não podes substimar a ajuda que está nas tuas mãos dar-lhe. Quis dizer-to mesmo com prejuízo de coisas outras que queria dizer-te.

Decididamente gostei dos postais para as miudas; das reproduções só de duas (desenhos Degas). Vê- se me arranjas mais (não há colecção?) dos
que tem uma historia em verso (trouxeste-me dois, azuis com letras e desenhos a branco). Quando tiveres ocasião ou vagar, lembras-te?

Já muito comprimidamente: peço-te encarecidamente que compres o boneco que a [N] pediu (palhaço de corda a dar saltos: onde é que ela
teria visto isto? O facto é que existem mesmo). Sensibilizou-me o reparo da [N] sobre os feltros para a [N] e nada para ela. Não tem sentido eu dar voltas para comprar
o boneco que me é impossível arranjar aqui. Dá-lho como se tivesse sido enviado por mim pelo correio. Considero isto importante: apelo para a tua compreensão e sensi-
bilidade. Ao mesmo tempo, compra um livrinho de histórias para a [N]: para não ficar agora ela a chuchar no dedo... O resto disto, dos postais compra-
dos e a comprar, dos cotovelos da camisola, da escova de dentes comprada, das peúgas compradas e de qq outra coisa q me tenha esquecido mencionar, diminuis ao
dinheiro q minha irmã me mandou e depois entregas-me ou envias-me o resto, se dele não precisares evidentemente! (Eu desisti por agora do conserto dos oculos,
porque vou-me arranjando com os que tenho.) Já agora compra-me 3 Sabonetes Glyce Ach Brito.

Não queria esquecer-me de te meter um empenho para que "fantasies" ou "mascares" a [N] para a festa do colégio. Falo nisso a meu Pai, mas já não
deve ir a tempo dele "intervir". Ela vive - com toda a mimalhice de que tu a impregnas - o problema sentidamente. A miudinha já tem excessivas coisas que a dis-
tinguem das outras, que devemos evitar-lhe mais. É evidente que se fôr questão de dinheiro, avança e diz-me quanto é diz-me que eu comprometo-me solenemente a arranjá-lo.

E com tudo isto ainda não te perguntei por ti, eixo disto tudo, subjacente a isto tudo e só aparentemente omitida. Tive que me limitar ao que
considerava mais imediato. Sábado, se tiver disposição, escreverei; e sobretudo se tiver recebido essas cartas rascunhadas, tuas: porquê, mas porquê? Compreende
que te amo e que preciso das tuas cartas para além, muito para além da estilistica! (Que peneiras no meio disto!)

Conta-me das miudas e de ti. Como é que as [...] miudas vêm da escola? Como é que vão? Responde-me às perguntas sobre como é isto, etc.
Abraços à tua Mãe e à tua Irmã. Muitas meiguices e beijos às miudas.

Com amor, beijo-te

[N]

P.S.
Ps o tabaco de cachimbo não esqueças que eu prefiro mesmo o "branco" (caixa branca). Por favor, diz-me quando fazem anos a [N], a [N] e o [N]
[N]

Fl. [1]r
PS: Estava para mandar a meu Pai uma foto da [N] das tiradas pela tua irmã. Mas só tenho duas, e além disso, agradava-me
muito mais que fosses tu a enviar-lhe uma! Fazes mesmo isso? Confio que sim!
[N]



Contexto
Prisão



Palavras Chave

Tipo: conselho
História: prisão
Sociologia: família, saúde, migração, condições económicas




Suporte Material

Suporte: uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Medidas: 275mm × 211mm
Mancha Gráfica: sem linhas em branco entre a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Ana Guilherme
Revisão: Mariana Gomes
Codificação DALF: Ana Guilherme
Contextualização: Ángel Rodríguez Gallardo




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