1967. Carta de amor de um alferes para a sua namorada. De Luanda para [Coimbra] (concelho). FLY0069

FLY0069
Carta de amor de um alferes para a sua namorada. De Luanda para [Coimbra] (concelho).

Data
15/10/1967

Referência Arquivística
N.A..
N.A., Coleção Particular, FLY0069, Fólios [1]r-v, [2]r-v

Resumo
O autor conta à namorada o domingo formidável que passou. Fala-lhe ainda da preocupação que o seu irmão lhe dá.

Local
Luanda

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Texto

Fl. [1]r
Luanda, 15 de Outubro de 1967

[N]:

Estou a escrever-te no domingo à tarde, antes de
ir para a Messe jantar. É provável que ainda hoje
ao possa acabar a carta a tempo de a mandar para
o aeroporto.

Acabei [N], há pouco de viver uma das emoções
mais fortes da minha vida. Há tempos que ansiava
por uma oportunidade destas. Dei um passeio aéreo.
Há já algum tempo que havia sido convidado para
dar uma volta de avião, por um rapaz que foi
do meu pelotão de instrução básica, e que tem
"brevet" e é sócio do Aero Clube. Hoje, depois de
almoçar e ter vindo ao meu quarto, como não tinha
nada de especial a fazer lembrei-me de lhe telefonar.
Ele é dono dum Hotel Residencial cá em Luanda.
Ele próprio me atendeu e passado algum tempo veio
me buscar ao quartel de carro e lá fomos, eu
na espectativa. E não foi sem uma certa emoção
que me vi lá nos ares. Sobrevoámos toda a cidade de
Luanda durante quase uma hora e depois uma ilha
chamada a ilha de Mussulo e que é parisidíaca,
situada já a uns bons quilómetros da costa.
Gostei imenso do passeio, que durou hora e meia.
Ainda fez umas avarias com voos picados e curva
apertada e eu ao princípio receoso e na espectativa,
já estava depois completamente descontraído. Voá
mos numa avionetezinha. Tirei um rolo completo
de fotografias de que depois enviarei.
Depois de descer, fui para o o hotel dele onde
Fl. [1]v
me convidou para tomar umas bebidas. Em seguida
veio-me trazer ao quartel.

Olha hoje estou bastante satisfeito com o meu
dia. às sete da manhã fui à Missa, depois de
três domingos a zero, e comunguei, pois confessei-me
ontem. Sinto-me outro e mais alegre. Realmente
o Senhor é formidável! Ainda bem.

Depois de vir da missa, fui ter a casa do [N]
tendo ido com ele e mais um grupo de rapazes
e moças para a praia. Esteve uma manhã
de praia formidável, com um sol forte e um
mar estupendo. Estou todo queimado, quase
pareço um "pretinho". Viemos da praia e
fui almoçar para à Messe, e de lá vim para
o quartel. Tudo o que se seguiu já te contei.
Agora à noite não saio, preciso de estudar e pre
parar umas instruções para amanhã. A vida é
dura e mais uma semana de trabalho e de
responsabilidade vai começar. Também se
não aproveitar o fim de semana para mudar
de ambiente e me divertir, dou em maluco,
sempre aqui fechado toda a semana, sem
tempo para nada práticamente, sempre a trabalhar no duro.

Olha a partir de terça ou quarta-feira vou deixar
de almoçar na Messe, pois perco imenso tempo para
lá ir, que me faz muita falta. Passo a jantar
aqui junto ao Quartel numa casa de comidas. Não
me fica mais barato, mas se tivermos em conta
que o tempo é dinheiro, fica.

Querida [N], obrigado por me teres enviado
a certidão e o livro com os programas oficiais. Já
recebi tudo.
Fl. [2]r
Então como te tens sentido, depois de passada
esta preocupação dos exames? Concerteza que mais
calma.

E o estâmago? Continuas a sentir-te bem com o
chá? Quando precisares, tu e o [N], de mais é só
mandarem dizer. Está bem?

Quanto ao que me dizes sobre a prenda que te
mandei, fico satisfeito por saber que gostaste. Quanto
ao mereceres ou não o que te faço eu é que sei, está
bem? Bem sabes que para mim tu mereces tudo,
deste todo o meu amor e a minha dedicação, até
ao insignificante valor material de todas as coisa que
te puder oferecer. Só tenho pena é de não ter dinheiro,
nem possibilidades de envio, para te oferecer mais e
melhores coisas. Apesar da distância e apesar das mi
nhas faltas de correspondência de vez em quando, tu
continuas e continuarás para sempre a ocupar um
lugar impar na minha vida. E podes estar descan
sada, que o [N] nunca mudará de ideias, mesmo com
a autêntica caça ao homem e ao alferes, que muitas me
ninas da melhor sociedade de cá fazem! Já não é só
ao que tem carro. Tudo serve! Mas como já não
tenho 17 anos e a vida já me tem dado muita expe
riência em todos os aspectos, isso comigo não "pega".
[N] ainda bem que o ambiente em tua casa
melhorou com o êxito dos teus exames e ainda bem
também que os teus pais te disseram que continuavas.
Um dia lhes havemos de retribuir todo o sacrifí
cio que estão a fazer por ti.

Então já começaram as aulas? Tens os mesmos
professores? Tens mais cadeiras ou as mesmas do
ano passado? Agora com a tua irmã também
no Instituto, sentir-te-ás melhor pois já tens compa
Fl. [2]v
nhia. Que tal o teu horário? Antes que me esqueça, dá
os meus cumprimentos à [N].

A [N] anda já melhor do coração? Ela que tenha cuidado com o coraçãozinho que é uma coisa muito im
portante...!

[N], quanto ao que me dizes sobre o meu irmão,
e tendo em conta aquilo que o Cabral também me
mandou dizer, digo-te que ando preocupado com
ele. Não sei quando é que aquele rapaz se faz ho
mem e começa a pensar a sério nos problemas da
vida. Na idade já não é nenhuma criança. Eu com
preendo em parte certa maneira de proceder dele.
Não tem amigos e por hereditariedade é teimoso e um
pouco orgulhoso.

Obrigado pelo que tens feito por ele. [N], continuo
a pedir-te que faças o que puderes por ele. Fala-lhe
com energia e toca-lhe simultâneamente ao coração.
Diz-lhe que eu, cá longe, espero muito dele e gostava
de o ver um homem realizado. Convida-o para
passear contigo e faz-lhe sentir que és da famí
lia e és amiga dele. O meu irmão precisamente
porque nunca teve amigos verdadeiros, a não ser a famí
lia, não confia em ninguém e também porque é teimoso
e orgulhoso. É preciso primeiro que conquistes a ami
zade dele e a sua confiança e depois ser dura
e incisiva para ele e não ficar no rir-se das
macadcadas e brincadeiras que ele faz. Vai-me
dizendo alguma coisa sobre ele.

Faço ideia do que a minha pobre mãe, tem so
frido com ele! Coitadita.

Eu continuo óptimo. Estou a dar instrução no duro, porque
tenho de preparar bem os meus homens.

Vou terminar. Cumprimento para os teus pais, [N], [N],
[N] e pessoas amigas. Adeus, querida [N], estou sempre con
tigo, o teu sempre

[N]




Contexto
Guerra Colonial



Palavras Chave

Tipo: notícias
História: guerra colonial
Sociologia: intimidade, serviço militar, religião, família, educação, saúde




Suporte Material

Suporte: duas folhas de papel pautado de 32 linhas escritas em ambas as faces.
Medidas: 265mm × 155mm
Mancha Gráfica: quatro linhas em branco a separar a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Ana Guilherme
Revisão: Rita Marquilhas
Codificação DALF: Ana Guilherme
Contextualização: Joana Pontes




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