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Texto Peniche, Meu Amor querido: Lançaste-me o dilema para os braços. Inicialmente vieram ao de cima problemas pessoais e não o compreendi muito bem. Deixei--me levar pelo sentimento de decepção de não vires cá, de não te ver, de não podermos conversar, estar, apesar de tudo, alguma coisa juntos. Tenho sauda- des tuas; apetece-me ouvir o chilrear da [N], as suas boquinhas, as suas poses tão delicadamente femininas já. Depois, contava contigo, vivera a tua visita como um facto real que os dias avizinhavam. Sobretudo queria ver-te, estarmos. Chegou-me há meia-hora a tua carta, talvez um pouco mais. Pouco a pouco, não pude deixar de considerar outros factores; acabei por concluir que, mais uma vez, tinhas razão; que me competia decidir a mim. Eu sei que não há outra saída senão dizer-te que vás ao Aeroporto; que não vale a pena resistir a uma solução que é a única possível. Penso no quanto amo a [N] e a [N] e a [N] e a [N] e não me posso excusar [...] a telegrafar-te a dizeres que vás ao Aeroporto. (É o que faço agora). Custa-me muito, arrepelo-me, mas não tenho outra coisa a fa- zer. Não sei qual o estado de saude dos meus Pais, particularmente de minha Mãe; podem impor-se quaisquer medidas de auxílio, de préstimo e não quero que o deixes de fazer mesmo com o meu sacrifício. Preocupa-me, aliás, seriamente, como tantas vezes te disse, o estado de saude de meus Pais - e esta longa viagem não lhes há-de ter feito muito bem. Nem mesmo psicologicamente: repara, de certo modo, foram "despedir-se" do filho e dos netos. E não deve ser facil para ninguém despedir-se assim, com a noção premediata e irrecusável de que se despedem, de que é isso que vão fazer. Isto doi-me, aflige-me porque nada posso fazer, nem mesmo posso negar que as coisas são assim. (Que balanço dão da vida? Como reagem por dentro a essa certeza de poucos, inevitavelmente poucos anos?). Mas não é só isso, [N]. Tambem pesa o facto de desejar muito que as vossas (tuas e de meus Pais) relações se normalizem, a um nível de razoável convivência (mesmo que distante). Tu não ires, teria um significado "simbólico", cheio de implicações e agravos que é preciso evitar, mesmo com o custo de não te ver, de não ver a [N]. Peço-te que, sem cedências que não defendo, faças o que estiver na tua mão para diminuir desentendimentos e questiúnculas. Mas sem cedências que te repugnem ou que só agravariam situação futura. Penso, por exem- plo, na nossa [N] que deve continuar a viver contigo, que não deves deixar admitir, ou sonhar sequer, que possa viver longe de ti. Nem vale a pena discutir ou dar muitas razões: és a Mãe e pronto. Com delicadeza, com sinceridade tambem, mas com firmeza defende a tua personalidade e a tua vontade; sem causar feridas, mas sem transigências. Estás certa e eu amo-te - é o que importa. É isso mesmo: é uma no cravo e outra na ferradura! Mas tu entendes-me, sabes o que quero exprimir, como te quero defender de "absorções" entorpecedoras e como quero que, sendo como és e eu amo, evites, tanto quanto possível (e às vezes não será possível), feri-los, magoá-los, etc. E também que te sintas magoada ou vexada ou atingida quando não há razão para isso, ou há apenas uma razão superficial, de circunstância, de palavra puxa palavra. Releio o que escrevi. Estive a convencer-me a mim próprio, penso. De facto, não foi só isso, mas foi-o em muito. No fundo Fl. [1]v [...] não é nada facil convencer-me que não vens cá, que não tenho uma longa conversa com a Carocha... (No telegrama peço-te que não alarmes meus Pais com a saude da [N]. O [N] e a Mana é que estão em condições de colocar a questão nos termos mais realistas e menos chocantes. Não achas tambem?) Exageras, exageras e não é pouco. Há grande diferença entre as facturas e as tuas cartas. A primeira e a fundamental é que as tuas cartas falam-me de ti, da [N], das coisas que me dizem respeito - e que nunca me são frias. Depois porque eu consigo "ver-te" a escrever-me, o que vais pensando, às vezes hesitações que tens, às vezes o que queres dizer mas achas que deves dizer só um bocado, etc. Muitas vezes, eu sei-o, me hei-de enganar, mas, de qualquer modo, é divertido: surgem-me expressões tuas esquecidas, situações, nossa vida. Emprego. Bem, não digo mais nada. Só que ordenado baixou bastante; só que perspectiva de aumento deve lá ser nula ou quase nula, enquanto no actual emprego não o é. Bem, tu é que sabes. Não idealizes de mais, para não sofreres depois desilusões, mas resolve de acordo com o que vires claramente. Então a blusa que te dei? Porque é que não dizes nada? É para me fazeres a surpresa ou a surpresa é outra? Sobre a escola das miudas. Fiquei "furioso" comigo mesmo. Podias ter posto o problema com clareza e [...] antecipadamente, mas eu também o podia ter resolvido sem estar à espera. Conto ter, por estes dias, visita de meu Pai: se tiver coloco-lhe a questão mui- to clara e instantemente (SÓ NÃO SEI QUAL É O CUSTO EXACTO MENSAL...). Se não tiver, quarta-feira escrevo-lhe a ele e aos meus irmãos e o assunto resolve-se quase com certeza absoluta. Se não se resolver terei que tomar outras medidas, mas não será necessário, julgo. Podes estar absolutamente certa disso. Eu é que, confiando em que me dizias qualquer coisa, não supunha (ou melhor, nem pensei nisso) que era necessá- rio pagar já no acto de matrícula ou de inscrição. (E se calhar não é; tu é que temeste que fosse). Dizes "Todos os meus beijos para ti (coitadinha da [N]!)". Não percebo. E a [N]? Coitadinha da [N] que a Mãezinha dela, de quem tanto gosta e ama, esquece-se de falar nela. Fia-te nessa fiteira da [N], que depois vais ver. Até já sabe contar até 30, a finória. Alguma coisa tem em vista, acautela-te! (E a fotografia que eu pedi indirectamente à [N]? Eu vingo-me!) Há uma coisa muito importante. Escreves: "Recebi resposta à carta que escrevi há tempos. Espero que se vejam os resultados". Não sei a que te referes, ou melhor, [...] suponho que [...] só te podes referir ao requerimento que fizeste. É? Se é, peço-te com urgência que me mandes dizer exacta e explicitamente a resposta que recebeste. É um assunto que, naturalmente, me interessa. Outra coisa importante que só a ti posso pedir: uma haste de óculos, marca "PERSOL-RATTI" - 14,5 cms. É para substituir a que está partida e que, por mais que eu faça, não tem concerto decente. Desculpa o trabalho, mas vê se te é possivel. Sabes que mais: não me conformo com a ideia de que não vens cá. Foi um balão coloraido e vivo e lindo que rebentou, subitamente. Estou danado, trite, tramado. (Nem me disseste o que fizeste no sábado e domingo passados...). Enfim, aproveita o tempo, descansa, passeia, escreve-me, diz-me o que fazes, conta-me da [N], da tua Mãe, do teu emprego. Pensa que te amo e que nada do que me vem de ti me pode parecer impessoal e frio. Pensa que é funda a alegria com que leio notícias tuas. Pensa que tenho saudades tuas e da [N] e da [N] e que estou todos os dias, um pouco, convosco, em vós. Todos os meus beijos para ti (coitadinhas da [N] e da [N]). Com muito amor, teu [N] Contexto Prisão Palavras Chave Tipo: queixa Suporte Material Suporte:
uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Créditos Transcrição: Leonor Tavares Discorda da nossa leitura? Por favor escreva-nos: cardsclul@gmail.com |
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