FLY1067 Data Referência Arquivística Resumo Local Cartas relacionadas Download XML Download em formato PDF |
Texto Fl. [1]r Peniche, 18. Março.1970 [N]: A tua carta provocou-me sucessivas reacções, às quais corresponderam sucessivas cartas...Comecei por te dizer, mentalmente, que afinal não eras muito forte em interpretações, mas em troca que te sobrava da boa ironia camiliana ou queiroziania. Valha-nos ao menos esse senso de humor... negro. Depois entrei numa polémica, mentalmente, bastante acesa contigo em que demonstrava por a + b a injusteza de 90 a 99% da tua carta, como arrastaras as coisas para um terreno equívoco e falso, onde todo o diálogo [...] é impossivel, talvez sem interesse para ninguém, etc. (Nesta fase, atingi uma elevada irritação e fui reler a tua querida cartinha). Decidi, então, mentalmente, não te "ligar", fazer de conta, não te responder. (E fui dormir, sem insónias, o sono dos justos, mesmo dos justos incompreendidos - que é o meu caso.) Hoje, já bem dormido, com um dia cheio de sol e os pássaros a andarem por aqui a piarem, já as coisas me surgiram diferentes, menos pessoalizadas. E comecei a achar-te piada. Vi que tinha que te responder não fosses ficar inquieta com o meu silêncio. Depois resolvi não reler a carta para não me deixar fixar nos pormenores. Havia simplesmente que te responder no meu terreno, descontraidamente. Inocentemente... Primeiro ponto: afinal a minha carta, mesmo do ponto de vista psicoterapéutico, deu bons resultados. Escre- veste, e não pouco, disseste o que sentias e talvez mesmo o que não quizesses, desceste ao terreno dos simples sãos, reagiste! Já não é mau, nestes tempos que vão correndo. Conclusão: tenho mesmo que insistir com idênticas cartas. Sentes ou não que te fez bem desabafar? Agradeces ou não a oportunidade que te dei? Certo? Segundo ponto: Eu não tenho nada com o que se passou ou não passou nestes 10 meses. A nada assisti, nada ou quase nada sei, etc. O que decididamente afirmo é que também não vale a pena ficar (seja quem for) a remoer as coisas toda a vida, nem fazer delas um drama em 5 actos e muitos alguidares. O melhor é supreender uns e outros, não esquecer que todos são pessoas válidas, etc. Ver as coisas com objectividade e despreendimento. Ultrapassar as feridinhas pessoais. E para além de tudo não me meterem no meio do barulho... Certo? Fl. [1]v Terceiro ponto: não tens nada que explicar, nem a minha preocupação foi ou é ou poderia ser essa. Se achas que fizeste o que pudeste, etc - não tenho nada contra. Simplesmente não foi isso que eu compreendi do que tu me disseste. O que eu compreendi do que tu me disseste foi que, a partir de certa altura, o que te impedia de resolver problemas era a tua falta de confiança em ti própria, a tua timidez, etc, etc. Por isso ficavas à espera do [N], não ias aqui e acolá, etc. Afinal não compreendi bem e as coisas não são nada assim, etc, etc? Optimo, fico contente, abraço-te, etc! Certo? Quarto ponto: Como comprendi mal (desculpa!) o que procurei sublinhar foi que: a) o tratamento médico tinha o perigo de te "tran- quilizar" e "adormitar" sobre os problemas (emprego, saude, filhos, casa, etc); b) tu própria acabarias por te sentir derrotada com uma situação que aos teus olhos não aparecia justificada; c) não havia razão para tu sentires falta de confiança em ti própria; d) parecia chegada agora a altura de reagires. Peço-te que releias o que escrevi e vejas se não é mesmo isto que lá está. Certo? Quinto ponto: Abordei um outro conjunto de problemas a que não respondes directamente. É preciso reconhecer, no entanto, que implicitamente és bastante clara e precisa. Sim, senhora, não esperava tanto! Certo? No fundo o que importa é que não julgasses que pretendia criar-te ou agravar-te problemas, que tivesses a certeza certa de que procurei apenas contribuir para a resolução deles, apesar das condições realmente pouco propícias. E isto não puzeste tu em duvida; o resto é secundário. É ou não é mesmo assim? Obrigado pelas minas-lápis (tantas!) e pelo afiador. Insisto em que não gastes dinheiro em comidas e mimos: a questão concreta é que não o tens... até me posso engasgar com as coisas e nem me sabem bem. Recebi ontem uma carta do Dr [N]. Em P.S. diz-me textualmente e apenas "O Ministério Público interpôs recurso". Se te fosse possível, via vantagem em saberes exactamente qual a razão e qual o objectivo deste recurso, para o que seria bom conhecer o texto do relatório em que se interpõe recurso. Peço-te que vejas em em que te é possivel ajudares o Dr [N] [N], etc. Eu vou escrever-lhe hoje mesmo, mas agradecendo sobretudo a sua carta. Vou também escrever à nossa [N], a chamar-lhe mimalha e chorona e querida. - Afinal não tive tempo. O postal mais lindo dos que a [N] me deu. Vou também escrever ao meu Pai: às vezes é preciso conhecê-lo: quanto mais se acarinha, mais gosta de se fazer zangado. Já sabes quando vem a tua irmã? Já toda a historinha que construiste ou faltam capítulos? Tenho que acabar aqui... Abraços a todos e à tua Mãe. Beijo-te [N] P.S.Ps - Quando é que te lembras de me mandar fotografias tuas, sobretudo as que eu proprio te tirei sobretudo uma delas? (E a propósito: as máquinas...?) [N] Contexto Prisão Palavras Chave Tipo: crítica Suporte Material Suporte:
uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Créditos Transcrição: Leonor Tavares Discorda da nossa leitura? Por favor escreva-nos: cardsclul@gmail.com |
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