1973. Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa]. FLY2025

FLY2025
Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa].

Data
07/05/1973

Referência Arquivística
N.A.
Arquivo Privado, Arquivo Privado, FLY2025, Fólios [1]r-v

Resumo
O autor tenta resolver, da prisão, um problema familiar criado pela logística das visitas das suas filhas. No final, agradece um Fernando Pessoa que recebeu de presente.

Local
Caxias

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Autor | Destinatário | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Fl. [1]r

Caxias,

7. Maio. 1973

[N]:

Saude para todos vós!

A [N] contou-me a tua reacção no sábado; estava, de certo modo, ferida por tu teres levado a [N]. Eu disse-lhe clara-
mente que teria procedido como tu procedeste, que tinhas tido razão e que não se justificava a susceptibilidade da [N]. Pedi-lhe
mesmo para te telefonar hoje, 2a feira, a dizer-te o que eu pensava e a esclarecer contigo as coisas, para não ficarem de pé
mal-entendidos entre vós. Em suma: a [N] viera, disse-lhe, passar o fim de semana com a [N] e era à [N] que cabia
tomar, sem esforço nem espirito de "obrigação", conta da miudinha; que se a [N] não podia fazê-lo então não deveria ter ido
buscar a [N]; que não era a [N] que "escolhia" com quem ficava ou onde ia: a [N] ficava e ia com a [N] e a [N]
deveria planear o fim de semana de acordo com isso, não como uma obrigação - em tal caso não tem interesse nenhum -, mas
como uma coisa "gostosa". Se tu (bem ou mal) admitiste que a [N] estava a "causar problemas" então muito natural-
mente fizeste o que eu faria: levaste-a. A [N] não pôde deixar de compreender e acabar por concordar. Simplesmente insistia
- e é verdade! - que a [N] não causava problemas, que adora a [N], que apenas julgou não dever contrariar a [N] que
queria ir ao casamento, etc. Creio que a [N] estava a ser franca e creio-o até porque a [N] estava triste e sentida por
a [N] não ter ficado com ela: que tu não tinhas compreendido o seu objectivo e o que ela sente pela [N]. Na minha opinião
deves ter em conta o que a [N] diz com indiscutível, quanto a mim, sinceridade.

É claro que eu parto do princípio que o problema de onde e quando te entregar a [N], no domingo, foi um
pormenor sem importancia, embora tivesse surgido com relevância aparente... Porque quanto a isso - foi o que vi com a [N]
ontem - a solução é simples: a [N] vai buscar a [N] onde e quando tu disseres e vai-te levar onde e quando te convier.

Eu sei que tu levantaste a questão da [N] não vir, no domingo, à visita. Há aí dois aspectos distintos que explico.
Em primeiro lugar, a vinda e depois não vinda da [N] que "atrapalhou" tudo. Ora eu tinha que ver em pormenor e com
cuidado vários assuntos com a [N], ligados à sua vida escolar, à sua saude, a problemas ligados com provavel vinda da [N],
transferências cambiais, etc, etc - inadiáveis. Estava a contar com a [N] e, portanto, com a tua vinda à visita no domingo:
o que possibilitava eu ter visita com a [N] das 13 às 15 e convosco (tu, [N], [N]) das 15 às 17. Embora meu Pai falasse
só na "possível" vinda da [N], fui surpreendido pela sua não vinda, mas não podia pedir-te para cá vires, de novo, ontem
e também não podia adiar a visita a sós com a [N]: compreende-o, se fazes favor. Em segundo lugar, não me pareceu
"decisivo" que a [N] viesse cá no domingo; ao querer que a [N] passe o fim de semana com a [N], o meu objectivo central
é que a [N] e a [N] se estimem e se dêem como irmãs, brinquem juntas, etc: pela [N] que gostará de andar no "pagode" e de
ser acarinhada também pela [N]; pela [N] (excessivamente só em lisboa) que expandirá a sua ternura real pela miudinha; e também
Fl. [1]v
pelo descanso que te possibilita. Só secundariamente, é meu objectivo que a [N] me traga a [N]. Secundariamente porquê? Porque tu
tens cá trazido bastantes vezes a [N] e eu não quereria, de modo algum, que o deixasses de fazer. Então seria preferível
que a [N] não fosse com a [N] e que apenas continuasse a vir cá contigo, etc - por muitas razões sobre que, aliás, já conver-
sámos. Em suma, a [N] passar um fim de semana com a [N] não pretende de modo nenhum - nem poderia sequer - substituir
as tuas vindas cá com a [N].
É certo que, em condições normais, a [N] teria vindo com a [N], no sabado e no domingo,
à visita e só as razões que te expliquei já o impediram.

Compreendo bem que tu deves estar "irritada" com estes azares todos nas vindas cá: domingo anterior, estava eu com o
dr [N]; este sábado, a [N] não veio (eu sublinhei que meu Pai disse apenas "possível"). É claro que não posso
fazer nada e quero acreditar que tu o vês com nitidez e sem veres nos factos senão o que os factos são: coincidências aborre-
cidas, muito aborrecidas também para mim sobretudo por ti, mas que não pude impedir que acontecessem. Quero dizer-te
com muita sinceridade que me preocupa bastante que possas pensar d outro modo: tu, às vezes, deixas-te ir atrás d uma imagi-
nação que sempre me inquieta... A sério, creio que compreendes que tambem eu fiquei aborrecido e também eu fiquei
irritado e que também eu não gostei nada, mas nada que cá tivesses vindo em vão: por muitas razões e também porque
gostava de ter conversado contigo. (Não sei se te te disse que a consulta do Dr [N] estava marcada para dia [D] (o que
me forçou a não comemorar, como tanto e tanto queria, com a [N] os seus anos que são nesse dia) e que só no dia [D] à tarde fui
prevenido que, afazeres profissionais súbitos, o tinham obrigado a adiar a sua vinda para o dia seguinte, domingo... Como vês são
umas coisas atrás das outras a correr à desfeição e independentes da minha vontade!)

Já com o problema da vinda da [N] eu penso que a tua vinda podia ter sido evitada, etc - mas não por mim. Por isso,
escrevo hoje à minha irmã - e pedi sábado que a [N] o transmitisse a meu Pai - pondo claramente a questão e insistindo. Em resumo: a) por
mim nunca é inconveniente, muito pelo contrário, a vinda da [N] ver-me; b) não é preciso sequer prevenir-me; c) em vez de me escreverem a
mim, que devem escrever-te a ti - ou telegrafar - dizendo [N] vai visita dia tal, etc; d) no caso de, à ultima hora, não poder vir é
a ti que devem, escrevendo ou telegrafando, prevenir-te. Insisto que escrevam (para R [L], [D] - [D], etc) porque tefonando podem
não te encontrar, etc. Escrevendo tu, em principio, recebes a correspondência: se não receberes... o problema é teu, é contigo, etc; mas
o essencial é que não me façam de mim intermediário em coisas tão simples, estando eu preso, logo cheio de limitações, etc. que me
impossibilitam de te prevenir de que a [N] vem ou que já não vem, etc. Estou certo que a [N] passará a fazer como lhe
digo, isto é, a escrever-te prevenindo-te a ti directamente de vindas ou não vindas. Julgo que tu estarás de acordo e vês bem
porque escrevo neste sentido e com força às minha irmã. Certo?

Por fim - mas não é nada pouco importante para mim - dizer-te que me tenho deliciado, autenticamente deliciado, com o F Pessoa.
Aliás sei que tu sabes quanto. Agradeço-te (-vos?) muito e muito, um pouco incomodado por calcular que foi caro... Mas contente porque
me é uma "coisa" preciosa. Aliás, a Antologia que a [N] me ofereceu tambem me maravilha até porque tem montes de coisas que eu
nunca tinha lido - não vinham na edição que eu conhecia.

Abraços para todos vós, em especial para a [N] e muito em especial para ti

[N]

P.S.
P.S - Peço-te o favor de me mandares dizer a idade do [N] e do [N]. E ainda o seguinte:
se a [N] vê qualquer iconveniente em que eu tenha uma (ou mais) visitas com o [N], respeitando
os seus estudos, etc, etc. Gostava de o conhecer. Peço-te que digas à [N] que eu gostei muito
de a ver.
[N]



Contexto
Prisão



Palavras Chave

Tipo: instruções
História: prisão
Sociologia: família




Suporte Material

Suporte: uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces.
Medidas: 275mm × 211mm
Mancha Gráfica: sem linhas em branco entre a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Mariana Gomes
Revisão: Leonor Tavares
Codificação DALF: Mariana Gomes
Contextualização: Ángel Rodríguez Gallardo




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