FLY2069 Data Referência Arquivística Resumo Local Cartas relacionadas Download XML Download em formato PDF |
Texto Fl. [1]r Cadeia Caxias, Querida [N]: Vejo-te envolvida nisto tudo. Não sei se será uma solução optima, mas não encontro outra e vais aprendendo... Con-tigo sei que podemos contar, mas peço-te que não sacrifiques em demasia os teus afazeres - profissionais, sentimenais e outros que tais. Conversamos já na visita. Pretendo agora recapitular algumas coisas, visando definir em concreto a minha posição. Peço-te o favor de dares a ler esta carta à [N] (e de a leres também). Escrevo hoje à tua mãe sobre tudo isto também. 1. Não se me afigura acertada a "teoria" de que há que não influenciar. Em 1o lugar, todos nós nos influenciamos, mesmo com o silêncio, mesmo com a tentativa de não intervir; em 2o lugar, deixamos necessariamente o campo aberto a outras influências e sugestões. O que julgo correcto é não forçar ou impor soluções, não empurrar; mas ajudar o próprio a determinar-se dentro de limites adequa- dos e levianamente certos. 2. Há seis meses que não falo com a [N], não conheço nem vivo inteiramente os seus conflitos e anseios. Ausente, por um lado, não-informada, por outro. Esforçando-me por perceber nas entrelinhas, mas necessariamente com uma grande margem de erro. 3. O que parece essencial é que a [N] não deixe criar em si uma ideia de beco sem saída, de conflitos insanáveis em termos normais, de circuito-fechado. Repito-lhe que pode contar comigo, com a minha compreensão, com o meu apoio. Procuro, em cada instante, penetrar nas suas hesitações e preplexidades, atingir as suas ângustias. Baralho-me, por vezes, no muito que desconheço, mas não tanto que não permaneça a seu lado. Doi-me que se sinta isolada, incompreendida, estranha, perdida. Não há qualquer razão para isso. É forçoso fincar os pés na ideia de que é possivel encontrar solução para os problemas, para o seu próprio viver. É forçoso rejeitar, d uma vez para sempre, o medo de tropeçar nas coisas, o medo de se bater pelo que quer e entende, o medo de não ser capaz. Ajudada, como os outros o são; acompanhada, como os outros o são - como os outros também, com dificuldades identicas, os mesmos sucessos e os mesmos êxitos, conseguirá romper, impor-se, moldar a vida à sua medida. 4. O que seria altamente mau era que na cabeça da [N] se criasse a ideia de que a única solução está na ida para Africa ou na sua demissão de viver. Por um lado, abrir-se-ia uma situação extremamente conflituosa entre nós, que me seria completamente im- possível compreender e aceitar depois do que dissemos e nos garantimos. Por outro lado, os problemas não seriam resolvidos, mas apenas transpostos para outro lugar, muito provavelmente em condições e circunstâncias mais difíceis, tornando-se-lhe quase impossível voltar atrás. 5. Em tudo isto me surge a tremenda importância de trocarmos opiniões. Não é possível fazê-lo directamente, mas é-o, mesmo se limitadamente, através de ti. O espaço principal deve dirigir-se nesse sentido, para mantermos, em quaisquer circunstâncias e através de tudo, aquela fraternidade sem máscara de que nos orgulhamos. Nenhuma tese poderá ser tão falsa, e mesmo tão dolorosa, como admitir que é necessário poupar-se, suavizar as coisas, etc. Pois não serão os meimeus fundamentais problemas a ausência de vida, de conhecimento, de presença, etc, etc? É uma das minhas mais caras crenças a de que nos saberemos manter sem meias-verdades, cara a cara, muito rudemente francos. 6. Nenhum cofconflito é soluvel fugindo-lhe, torneando-o, adiando-o. A fuga, etc não significa senão , que, d uma forma ou d outra, somos impotentes para os resolver, que não lhe vemos, de facto, solução. Vejo e sinto, é-me quase palpável, a rectidão de contradições em que se debate, as dúvidas de sentimentos e de aspirações, os falsos orgulhos, as "realissimas peneiras", etc, etc. Em tais condições, a possibilidade ser "empurrada" ou "atirada nesta ou naquela direcção é enorme, em todos os campos. O caminho é definir firmemente soluções correctas e indiscutivelmente válidas, ponto por ponto, problema a problema, fincando os pés e a vontade e a coragem no terreno que vai sendo conquistado. Reagir, não se justificar, não se perder tambem em auto-desculpas, em auto-piedadezinha. 7. Mas certos problemas são indissoluvelmente d um conjunto de pessoas, embora em diferentes graus. Quere dizer, pedem, quando não exigem, soluções comuns, uns choques inúteis, uns dramas. Isso não significa renúncia ou demissão, mas apenas Fl. [1]v o reconhecimento que soluções válidas têm de ter em conta diferentes interesses e sentimentos, em diferentes níveis. Por isto mesmo, discordo que não tenha havido conversa franca com meus Pais, com [N], etc. Posso compreender, mas nem por isso discordo menos. E continuo a bater-me porque o faça. Imediatamente, tal conversa teria talvez levantado discussões e atritos, mas também haveria coisas que não teriam surgido, partes que se deixavam em pé, etc; e, a longo , prazo, estar-se-ia a caminhar para encontrar so- luções de raiz. Doi-me muito - mesmo muito - que, para além de todas as questiúnculas, não se tenha tido em conta as possíveis re- percussões na saude de minha Mãe; também me magoa que varias coisas me tenham sido silenciadas. E não percebo que não se tenha apelado para a minha ajuda, para a minha participação em problemas que afinal são meus. 78. A [N] necessita de tratar da saude. Achei-a ainda mais magra. A [N] tem problemas cardíacos sérios; a [N] tem problemas intestinais sérios; a [N] tem problemas nervosos sérios. Estes problemas são solúveis e vale a pena resolvê-los. Mais: resolvê- -los é uma base importantíssima para resolver todos os outros, para reganhar forças físicas, vencer a apatia, etc, etc. Vai-se, muitas vezes, na tese de que "não estamos doentes, mas somos assim"; esta ideia é completamente falsa e não resiste a uma análise superficial. A propria convicção de que "apenas somos assim" é frequentemente já o fruto da doença. Ora não há dificuldade em tratar-se, em arranjar médicos, etc, etc. Nada pode justificar que não encare de frente e com energia esta questão. Urge fazê-lo. 9. Ante a [N] coloca-se como questão central o definir-se com acerto, olhando o conjunto dos sentimentos e pessoas em jogo, mas olhando também para si-propria, com sinceridade. Que não se deixe arrastar por falsas piedadezinhas, mas tambem que não embarque na auto-comiseração... No sentido de a ajudar e para que me ajude a ver claro, a compreendê-la, a apoiá-la, a ajudá-la, eis as ques- tões que considero principais: A - ONDE VIVER? Não vejo mais que 3 possibilidades: Porto, Lisboa, Africa. No Porto conhece as vantagens e os inconvenientes: há que definir com segurança uma posição e bater-se por ela. Saliento uma coisa: se concluir que não deve lá viver, então é preferível não voltar. So se iriam criar novas situações tensas, novos choques, etc, cada vez mais intensas, etc, muito provavelmente azedas questiunculas torná-las insanáveis, etc. Em Africa, considero eu, para além do mais, insuportável para mim: é esse o "grande sacrificio" e o único que de todo entendo ter o direito de lhe exigir. Tenho a certeza que o compreende, conto com ela e acentuo que absolutamente nada poderá justificar uma solução unilateral e pela força (a força que só vem de eu estar preso...). Em Lisboa, conhece dificuldades e possibilidades. Uma vez que decida seguramente ficar em Lisboa, julgo que não será muito difícil ajudá-la, congregar os esforços de todos, etc, etc. Não perca pres- pectivas porque muitas tempestades que parecem autênticas são em copos de água. E os problemas acabarão por resolver-se. B - EMPREGO? Parece indiscutível que não quere "lavar os tachos": defina-se firmemente! É uma editorial? É publici- dade? O que é exactamente? Tem que ter em conta reais possibilidades e seria desastroso que as pessoas começassem a admitir que faz exigências excessivas, que afinal não tem muita vontade de resolver o problema, etc. Julgo que o justo é agarrar uma possibilidade aceitá- vel, ir ganhando experiência, mudar depois - se surgir oportunidade vantajosa - para outro melhor, etc. - O desemprego nem mesmo psicologicamente a ajuda. Não me parece, nesta base, difícil resolver a situação se for abordada e trabalhada sistematicamente. É preciso que me ajude a ver claramente o que quere, que dificuldades se lhe levantam, que hesitações têm, etc, etc. Assim é-me difícil ir mais longe. C - FILHAS? Quere ou não ter ambas consigo? Poderá ou não tê-las, dadas as reais forças e possibilidades? Que ajuda real que pode dar a Mãe? O problema tem que ser visto olhando para o interesse das miúdas, para a sua educação, etc, etc. Eu gostaria que se mantivesse com ambas. A [N] precisa de ir para uma pré-primária; a [N], a curto prazo, também. É preciso também aqui planificar as coisas e começar a dar passos numa direcção definitiva, sem desânimos. Bato-me também para que se mantenham, e se possível estreitem, os laços com a minha família, Avós, Tios, Primos. Como? Passando lá férias, semanas, fins de semana, etc. Não compreenderia que levantasse obstáculos a que as miudas, [...] as duas ou uma, passem temporadas no Porto, desde que daí não advenham traumatismos. É perfeitamente natural e normal. E só ajudará as miudas a recomporem-se de "velhos traumatismos" o conseguirmos que se habituem a estar sem o pai ou a mãe; o que é funda- Fl. [2]r mental é que deixem de associar afastamento com perda, etc, etc. Bato-me também para que se recomponham, estabilizem e normalizem as relações da [N] com "a família do pai das suas filhas". Foram questiúnculas que isoladamente nada valem, nada significam, etc e que não devem, [...] impedir a continuidade de laços naturais. D - CASA - CONVÍVIO? Também aqui não sei com o que conta. Que resulta da vinda da [...] . Quanto tempo fica- rá cá a Mãe? Não ficando cá a Mãe poderá continuar a habitar a casa? Enfim, o que há de facto? Se [...] há, a situação actual não poderá manter-se, porque cansará as pessoas. Será impossível encontrar uma solução conjunta com alguém, sua amiga, etc evitando o "terrível" isolamento d um quarto ou d uma parte de casa alugada a alguém desconhecido? É natural, tam- bém aqui, que não seja possível realizar logo, às primeiras, a solução optima. Mas será meio caminho andado saber-se o que se procura, em que direcção e com que perspectiva avançar. E - NOVAS RELAÇÕES? Determinar-se tendo em conta todos - mas todos - os ângulos e todas as suas forças. Encontrar-se autentica, sincera - eis o que é preciso. É fácil? É difícil? Não importa, é o caminho. Não se mova senão pelos seus próprios sentimentos, sem piedadezinhas, sem cedência a quaisquer pressões, com inteira franquesa e inteiro egoísmo. Quando e como considerar possível, agora, daqui por 6 meses ou 2 anos... Qualquer que seja a "saida" que encontrar saiba que não anula nem o meu apoio, nem o que lhe tenho afirmado, nem sobretudo a minha integral noção de res- ponsabilidade pela sua vida actual. Fiz tudo quanto pude para lhe subtrair obstáculos, para lhe possibilitar a maior am- plitude possível de opções e movimentos, etc, etc. Fiz disso um ponto básico e não é difícil verificar quanto me tem preo- cupado e qual tem sido o meu esforço. É com perfeita noção das coisas que afirmo compreendê-la; bato-me [...] o transe para que esta ou aquela definição de laços entre nós (inclusivé a total rotura) não invalide nem distorça as con- clusões a que chegarmos nos restantes aspectos. Quero tornar-lhe claro e límpido que não considero nem imoral, nem negativo, nem patológico, etc, etc que entenda dever se compor ou recomeçar a sua vida sentimental, que considero perfei- tamente normal, natural, humano e legitimo que o faça se o concluir assim. Que me dissocio inteiramente de qualquer pressão [...] dos meus familiares em sentido contrário a este e que rejeito inteiramente todos os preconceitos e "moralzinhas" que existam. E que, ainda, insisto e repito e torno a repetir que neste campo interessa muito pouco que olhe para mim ou para os meus e que olhe sobretudo e acima de tudo para si, para os seus sentimentos e para a sua vida. Se, d um ponto de vista subjectivo, pode aparecer como fundamental - e é-o, de facto - este aspecto, d um ponto de vista prático justifica-se que seja colocado em último lugar. Como em muitas outras coisas, é preciso começar pela ponta do novelo, pelo que é de mais resposta, e sobretudo, pelo que é básico, instante, urgente: tratar das bases materiais da sua vida. Saliento ainda que as nossas relações, hoje ou amanhã, apenas a nós os dois dizem respeito e que considero que qualquer definição que lhe dê hoje, pode mudá-la amanhã, se o entender. Isto não é propriamente um negócio em que é preciso manter, a todo o custo, a palavra dada. O que é preciso manter é a limpidez de propósitos, a lealdade e a austeridade. 10. Sugiro que pegue num lapis e num papel e comece a definir-se, com optimismo, com coragem, par- cela a parcela. Deite contas às andanças necessárias, pessoas com quem tem de falar, iniciativas a tomar, etc, etc. Verá que começam a surgir-lhe perspectivas de solução, coisas que antes não vira, possibilidades novas, etc. Depois é mesmo tratar das coisas, dar mesmo os passos, andar e andar, cansar-se e cansar-se. Não se deixe vencer pelos muitos e muitos insucessos que, com certeza, sofrerá: reaja, reganhe força, recomece. A propósito de algumas coisas, costumava eu dizer-lhe, meio a sério meio a brincar, que é precisamente quando os problemas parecem insolúveis, quando parece não haver volta a dar-lhes que a solução surge. Que se trate, que se alimente bem, que se defina acertadamente, que não se poupe o esforço e que nunca perca a confiança em si própria - e o resto resolver-se-a, por acréscimo, d uma forma ou d outra. E ainda, importantissimo: que me responda e fale comigo por teu intermedio. Estou, aliás, con- vencido de que também a [N] sente profundamente a necessidade de conversarmos, de me ouvir também, até porque será Fl. [2]v sempre muito dificil, hoje ou amanhã, estar [...] tão à vontade com alguém como comigo. Certo? Então que não "engrole" o que tem ao dizer, que não cale situações, dificuldades, opiniões, etc, etc. Tudo isto estava escrito antes da visita de ontem, 2a feira. Mantenho-o inteiramente. Quero exprimir-lhes directamente a minha opinião, dada à [N] e ao [N], sobre os problemas sobrevindos: 1. Cabe à [N] decidir todos os problemas respeitantes às miudas, inclusivé irem para o Porto ou ficarem cá. A sua separação das miudas só pode justificar-se num período curto (2 a 3 semanas), com um objectivo bem definido (tratar-se, organizar as coisas), mas dependerá sempre e em última instância da sua vontade. Ficará sempre à sua decisão o regressarem para o seu lado. A [N] garantiu-me ser [...] vontade expressa da [N] que as miudas fossem uns tempos para o Porto: só nessa base o aceitei. E faço questão - e não sossego - de que a [N] me confirme expressamente isto. 2. A ida das miudas para o Porto resolve-lhe problemas materiais (de tempo, dinheiro, alojamento, etc) e alguns psicológicos (preocupações com elas), mas criar-lhe-á simultâneamente diversos problemas emotivos e psicológicos, para rel si e para as miudas, cujas consequências me são imprevisiveis e muito e muito me preocupam. Afirmei-o claramente à [N] e faço questão que me afirme expressamente que lhe transmitiram esta opinião. Defendo taxativamente que as miudas devem viver com a Mãe, fundamentalmente dependentes dela, etc, etc, mesmo que sejam mal lavadas, andem mal vestidas ou comam pior. 3. Preocupa-me muito não saber as condições materiais, psicológicas, etc em que fica. Penso que não se deve sentir nem isolada nem desajudada e nesse sentido vou escrever para isso. Aliás sobre todas estas questões vou escrever à tua Mãe tornando inteiramente explícito a "tragédia" que seria para todos lá, cozinhar-se qualquer coisa à margem da [N]. 4. Não terá sentido inibir-se de aceitar a ajuda material e moral de minha família (minha, afinal), inclusivé de regressar ao Porto. Simplesmente penso que não deve, de maneira nenhuma, voltar para lá nas anteriores condições. Explico-me: por todas as razões, entendo obrigatório que não fique a tratar das coisas de casa, que se empregue, que crie centros de interesse variados e amplo convívio. Defendo ainda que, no caso de voltar, mesmo tendo trabalho, é importantíssimo procurar viver em habitação própria (mesmo que seja um quarto alugado), vivendo com as filhas (mesmo que durmam no chão). Defendo ainda mais, que é preferível viver em Lisboa. É tudo. Peço-te, [N], que lhe dês a ler esta carta. Repito - e lê-a tu tambem. Abraça-a. Um abraço muito amigo do tio [N] P.S.P.S. A [N] perguntou-me se não temia uma possivel ida da [N] com as miudas para Africa. Temo e preocupa-me muito. Corro conscientemente o risco, até porque não há outra saida senão corrê-lo. Mas eu é que, directamente ou não, não lhe subtraio as filhas. Que se trate, mas das doenças reais. Ao [N] vale a pena ir, mas a mais ninguem. Insisto terminan- temente que se recuse a embarcar nessas mistelas psicanaliticas meninas-bem. O essencial é ganhar forças, trabalhar, organizar a vida, criar centros de interesse multiformes e amplos, conviver, sentir, viver. E, neste sentido, é positivo que tenha vindo para Lisboa. As filhas são nossas. E se tem que viver num bairro de lata, pois que vivam. Tem todas as condições fundamentais para tratar delas e não se deixe convencer do contrário. [N] Contexto Prisão Palavras Chave Tipo: instruções Suporte Material Suporte:
duas folhas de papel de carta pautado de 30 linhas escritas em todas as faces; carimbo dos Serviços de Verificação da Cadeia de Caxias.
Créditos Transcrição: Mariana Gomes Discorda da nossa leitura? Por favor escreva-nos: cardsclul@gmail.com |
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