1918. Carta familiar de um Sargento do CEP para a mãe. De França para Vila Nova da Barquinha (concelho). FLY2423

FLY2423
Carta familiar de um Sargento do CEP para a mãe. De França para Vila Nova da Barquinha (concelho).

Data
21/07/1918

Referência Arquivística
N.A.
Arquivo Privado, Arquivo Privado, FLY2423, Fólios 1-5v

Resumo
O autor faz uma longa narração à mãe, dando-lhe notícias de tudo quanto tem passado em França desde que foi mandado para a guerra. Não poupa pormenores na descrição do sofrimento, do medo, da revolta, mas também da sorte que o vai protegendo e lhe permitiu até arranjar uma namorada.

Local
França


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Autor | Destinatário | Notas | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Fl. 1

Campo de Batalha

21 de Julho de 1918

Maisinha

Tendo hoje possibiidade de lhe dizer alguma
coisa sobre mim, lhe envio esta carta pelo
meu colega [N] que não sei se a
maesinha o conhece; mas enfim, ele
prontificou-se em ir ahi dizer-lhe alguma
coisa sobre a minha situação; que é para
lamentar, porque de vez en quando vêjo ir
um ou outro de licença, e com a certeza
de não mais voltarem a estes campos
e aldeias devastadas por toda a qualida-
de de metralha e onde só reina a tris-
teza. Calcule maesinha que na minha
companhia actualmente somos 18 sargen
tos, para os quais existe uma escala para
irem de licença, quando para isso ha-
ja auctorisação, Ora já se deixa vêr que
eu estou em numero 18, porque não
ha 19. Ha um ano que estou na Com-
panhia já vi 3 sargentos de licença
como vê d'aqui a 6 anos ahi estou
Fl. 1v
A situação aqui é critica quanto pode
sêr, os oficiaes abandônam-nos cheios
de terrôr, calcule que na minha compa
que pertense ter 8 oficiaes estamos actual-
mente com um, e os restantes teem fugi-
do para os hospitaes, não tendo doença al-
guma mas sim mêdo. Com respeito á minha
subvenção, pelo que os outros meus colegas
me dizem que os seus recebem sei que a
maisinha tem sido roubada, não tenho
eu a sorte de ahi voltar; porque passaria
bastante tempo [...] com essa gatu
nagem que só não se contenta com o que
lhe dão, e acima de tudo com o seu bem
estar, para ir roubando ás familias dos
que lutam com atrozes féras e que cada
vez a morte se assemêlha mais angustiosa
porque umas vezes nos lembramos do que
já temos sofrido, e qualquer dia teremos
que secumbir nos campos da egualdade
e outras pelos exemplos que estamos vendo
todos os dias, e mesmo os que chegaram a
escapar d'esta coisa toda a sua vida não
pode ir muito longe.
Fl. 2
Pois a minha infelicidade foi eu ter sido
castigado, porque alem de ter cumprido o meu
castigo n'uma 1a linha onde me encontrava
a 70 metros dos boches, sofrendo os horrores que
a minha maesinha n'em tão pouco pode fazer uma
pequena, ahi foi ideia. Foi em Julho do ano
passado, até por sinal o mez mais bonito
cá em França, lá o passei nunca com
tenções de ainda ser vivo, mas sim de
estar já fazendo companhia a muitos portu-
guezes que jazem por estes campos todos
escavados pelas artilharias; enfim passaram
se os 25 dias que tinha que cumprir, e
apezar de serviços espinhosos que todos os
dias me obrigavam a fazer, ou para milhor
dizer todas as noutes, porque durante o dia
é que se dormia alguma coisa, isto é os
que passavam a noute commigo na 1a linha
vinham dormir para a 2a mas eu é que
de dia e de noute lá tinha que estar encos-
tado ao parapeito, até que no dia 4 de
Agosto ás 16 horas completei o meu fada-
rio, e lá sahi do meu boraquinho que eu
Fl. 2v
mesmo fiz a um cantinho da trincheira
e que tanta vez me livrou da morte, pois
que sempre tive a felicidade de nunca me
rebentar uma granada en cima de tantas
que todos os dias em meu redor revolviam
a terra. Se eu ahi aparecesse tal qual como
sahi ninguem me conhiceria, o fato cheio
de rasgões e n'uma completa lama, o
cabelo e barba tapando as orelhas, piolhos
eram como chuva e o corpo n'um perfeito
esquelêto. Mas tudo cumpri com paciencia confi-
do confiado em voltar para a companhia
que distava uns 90 Kilometros das trinchei-
ras e onde já se estava tranquilo, mas ainda
me susedeu o contrario, porque o General [N]-
[N] não se contentou em me castigar
porque ainda me passou para a 1a com-
panhia de Sapes Mineiros que então já
andava trabalhando nas trincheiras e
lá comecei eu então trabalhando com um
grupo de homens, sempre nos sitios mais
perigosos que para mim eram escolhidos
visto não ter ninguem que punisse
Fl. 3
por mim e eu na companhia ser tido
como um correcional. Mas eu a nada
fazia oposição apenas procurava desem-
penhar-me de todos os encargos o milhor
o possivel, para vêr se assim os meus
chefes comprehendiam que eu não éra
nada do que eles julgavam; e como tal
assim sucedeu, porque já fiz um ano que
aqui estou - na Compa e nunca mais fui
castigado nem reprehendido, quanto que
camaradas meus que os comandantes ti-
nham em boa consideração já o têem
sido. Mas contudo durante todo esse tem
po que andei trabalhando a sorte sem-
pre me protegeu, porque alem de andar
sempre mais exposto ao fogo da artilharia
só de tempos a tempos é que me morria
algum homem. Assim fui andando até
ao dia 4 de Abril, n'este dia foi abatido
um sargento à compa e que o dito éra
de conductores, pois o Comandante quiz
ter então essa amabalidade para commigo
e passou-me para os conductores, foi então
Fl. 3v
quando disse adeus aos meus trabalhos
de trincheiras, porque os sargentos montados
não trabalham, apennas dirigimos o
serviço de viaturas, no acantonamento
que distava então uns 2 Kilometros das
linhas de fogo, pois n'este dia considerei-me
feliz por me terem aliviado deste tão terrivel
pezo, mas pouco me gosei desse bem estár, por-
que no dia 9 de os boches déram-nos um
ataque que então é que eu pensei em ficar
esmagado, calcule a maesinha, que eram
mais de 5.000 bocas de fogo vomitando me-
tralha ao mesmo tempo, não havia acan-
tonamento n'em estrada que não fosse tu-
do batido pela artilharia, alguns civis que
se encontravam mais perto das linhas
fugiam espavoridos em camisa, isto é
tal qual estavam deitados nas suas
camas visto que o combate rompeu ás
4 horas da manhã, eu por acaso nesse
dia estava de dia á Secção e como o gado
estava um pouco desviado do acantonamen-
to da compa, o sargto de dia dormia lá
Fl. 4
n'uma barraca de madeira que nós
nos encarregamos de fazer, pois a maesi-
nha não calcula a minha sorte, pois logo
que rompeu o bombardeamento, o gado
começou a ser batido e eu acordei sobre
saltado aos estrondos da artilharia e
do gado frido, que soltáva urros enormes
mas como nós aqui dormimos sempre
vestidos, levantei-me n'um salto, para acor-
dar todos os homens para nos pormos em
fuga visto que nada ali nos poderia va
lêr, pois ainda não havia meio minuto
que tinha deixado a barraca já uma
granada a reduzia a sinzas, os homens
pareciam doidos, começou-nos depois
a chegar gaz axfixiante nós todos
puzemos as mascaras, mas os cavalos e
mulas soltavam urros que pareciam
racionais, até é mesmo impossivel fazer
uma discripção exata destas horas tão
terriveis; mesmo assim ainda disse a
alguns homens que ainda estavam
ao pé de mim, o melhor que temos
Fl. 4v
a fazer é vêr se pudemos engatar alguns
carros e fugirmos porque daqui a alguns
minutos estamos prisioneiros dos boches,
assim foi, ainda pude engatar 3 carros
que ainda as granadas não tinham
partido, e de 300 cabeças de gado que
tinhamos só pudemos salvar umas 20.
e assim foi fomos fugindo pelo meio
das granadas, por cima de mortos e
feridos que a todo o passo se encontravam
e assim fomos correndo todo o dia para
nos juntar-mos á companhia que já
tinha partido á mais tempo, e até que
á noute a encontramos, ahi descançá-
mos, um bocado e tinhamos algum ali-
mento, e depois continuamos a marcha
e assim fomos marchando durante
4 dias, até que depois descançá-mos
15 dias, ahi recebemos roupas e calçado
gado e viaturas, passado 15 dias vol-
tamos outra vez para a frente, onde
nos encontramos actualmente, mas
agora aqui estamos mais um bocado
Fl. 5
desviados do front, estamos n'uma al-
deia, bonita por signal, e aqui estamos
construindo trincheiras de reserva porque
se espera novo avanço boche, mesmo
assim aqui não estou mal, durmo
n'uma boa cama como n'unca dormi
em Portugal, aqui ha muitos civis e
eu como não vou trabalhar e os dias que
não estou de serviço entretênho-me fa-
lando com as mademoiselas que são mui-
to galantes e que gostam muito dos por-
tuguezes. O [...] vêr que em eu
tenho o meter namoro que por signal
é uma linda pecurrucha, se a maisinha
me ouvisse falar com ela ficava admi-
rada, eu já estou um francez perfeito,
pois não calcula como sou bem tratado
pelos seus pais, fico lá em casa d'eles
n'uma boa cama, como já lhe disse, e
todos os dias de manhã de me dão
2 ovos ainda na cama, e como com
eles em qualquer ocasião, e a pequena
é uma doida pelo seu [N], ou por
Fl. 5v
outra pelo seu [N], porque lhe custa
muito pronunciar [N], ela já um dia
d'estes escreveu á [N] felicitanto-a pelo
seu aniversario, porque eu disse-lhe que a
[N] fazia anos no dia 24, é o que me
vale mesmo assim é a pequena para destra-
ção, e já tenho penna de qualquer dia me
ter que ir embora daqui, porque natural-
mente já não arranjarei outra tão amigui
nha como esta, enfim são peripécias da
guerra; eféctivamente se eu tivesse a sorte
de um dia voltar [...] tivesse tinha
que contar uns bons serões de inverno.
Por hoje ja me estou tornando muito cháto
e por isso vou terminar, peço para recomendar
a todos os visinhos, abraços ás tias, avosinha
e beijos aos petizes e á [N].
Receba longos abraços

do seu filho
muito amigo

[N]




Contexto
I Guerra Mundial



Notas
Esta carta está parcialmente transcrita pelo neto do autor em dois endereços: https://www.facebook.com/media/set/?set=a.569547679805725.1073741829.358248897602272ANDtype=1 e http://praiaonline.planetaclix.pt/arquivo.htm.



Palavras Chave

Tipo: notícias
História: I Guerra Mundial
Sociologia: conflito armado, serviço militar, intimidade




Suporte Material

Suporte: cinco folhas de papel de carta não pautado escritas em todas as faces.
Mancha Gráfica: sem linhas em branco a separar a fórmula de endereço e o início do texto.
Nota: o quinto fólio está em mau estado de conservação, tem um rasgão colado com fita-cola até meio do comprimento da carta e em toda a sua extensão das linhas 12 e 13 .




Créditos

Transcrição: Mariana Gomes
Codificação DALF: Mariana Gomes
Contextualização: Sílvia Correia




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