FLY2600 Data Referência Arquivística Resumo Local Cartas relacionadas Download XML Download em formato PDF |
Texto Fl. [1]r Peniche, [N]: Escrevo-te um tanto apressadamente. Até ao último momento - isto é, até agora mesmo - esperei por notícias tuas acerca das nossas filhas. Aindanão sei se já mostraste (indo ou telefonando) a análise da [N] ao dr [N], nem qual é, afinal, a conclusão segura a que se chegou. A mim disseram-me - - sob reserva de opinião mais fundamentada e experiente - que seria possivelmente necessário repetir a análise. Que há? Como tem andado a [N]? Está mais gordinha? Tem mais apetite? (Recebeste tónicos? Pedi-os ao meu Pai). E a [N] (sem tranças!?!) como está? A escola quando acaba? Contava não ter que te dizer senão mais meia dúzia de coisas, quase sem importância, ao correr da pena. Recebi, no entanto, a visita da minha Irmã e vejo-me forçado a pôr alguns pontos nos ii. Vejamos, sintéticamente: 1. Escrevi-te no sábado, dia 24, uma longa carta sobre a ida da [N] para o Porto (deves ter recebido 2a feira); conversamos aqui no domingo anterior, isto é, dia 25 de Abril. Embora não fosse essa a tua opinião, acabaste por aceitar a ida da [N]. Perguntei-te expressamente se podia escrever à [N] e tu respondeste-me claramente que sim. Quero crer que te recordas. Em função disso, escrevi à minha Irmã, à [N] e ao meu Pai, pondo este problema ([N]), no âmbito e com a reserva que entendi correctas. Sei que a [N] te mostrou a minha carta. 2. Soube agora que estiveste com a [N] e a [N] no domingo, salvo erro; informou-me de como decorrera a conversa. Quero já salientar-te que eu considero os termos e o conteúdo dessa conversa descabidos, sem interesse, ultrapassados, senão mesmo contra-producentes. A questão não é de "bons" conselhos (vélhos e revélhos) ou coisa parecida: é uma situação de facto que urge resolver de facto. Foi isto que exprimi a minha Irmã com o tacto necessário. 3. Entretanto, surpreendeu-me a tua posição. Tanto quanto o posso ajuizar, reputo-a ambígua, informe, equívoca, sem firmeza, desnorteada e des- norteante, etc. O problema [N] é suficientemente delicado (doloroso, se quizeres) para que a discussão se arraste, se enrole, a moer e moer e moer... Afirmaste considerar desnecessária a ida da [N] para o Porto. É quereres fugir a encarar a realidade. A personalidade e o caracter da [N] estão sendo distorcidos, corroídos, reprimidos, traumatizados, complexados - e profundamente - pela actual situação e ambiente. Só um total alheamento, ou uma enorme insensi- bilidade ou uma espantosa cegueira de egoismo, pode impedir que se vejam os milhentos (não é exagero!) pormenores reveladores, grandes e pequenos, de enorme importância ou quase sem importância, mas constantes, permanentes, crescentes. Poupemo-nos excessivas concretizações. 4- Afirmaste ainda que as opiniões da tua Mãe e da tua Irmã eram francamente contrárias àquela ida. Eu não conheço a tua Mãe nem a tua Irmã senão pelo que ouvi (e pelo que ouço) dizer delas. [...] tTenho querido, pois, não me pronunciar; e desejaria continuar a fazê-lo por mais elementos que pos- suisse ou possua sobre as suas vidas. De qualquer modo, dispenso-me agora de contrabater tais opiniões, muito embora te saiba altamente influen- ciável... É que o problema compete-nos a nós resolvê-lo. Tens que reter isto d uma vez por todas. Sem qualquer escapatória. 5- Repito uma outra vez: a minha opinião, perfeitamente clara e definida, muito e muito meditada e há muito tempo, é esta: não existem as condições mínimas para a [N] se manter em Lisboa; a melhor solução, apesar de alguns inconvenientes imprevisíveis, é a ida da [N] para casa da [N]. TU SABE-LO. Mas além disso, sempre nos garantimos, das formas mais diversas e solenes, que, em situações como esta, a decisão sobre a [N] me caberia a mim. Está provado que as células do cérebro humano são as únicas que nunca se renovam: tem tal facto, ao menos, a vantagem de não nos ser possível esquecer enquanto vivermos. Fl. [1]v 6- Desde que estou preso - para não nos enfronharmos agora mais para trás - tenho-te apoiado, ajudado, encorajado, etc, quase incondicionalmente e tanto quanto posso e consigo, a resolveres com independência e coerente contigo própria os problemas fundamentais que defrontas. A vinda para Lisboa, o tratamento médico, o encontrar do primeiro emprego, a própria adaptação à nova situação, o regresso das nossas filhas, etc, etc. Muito ou pouco, bem ou mal, tu o julgarás; aliás, não me vem daqui mérito nenhum para mim, nem te diminui mérito algum a ti. Acho necessário lembrar-to apenas. Também me tenho recusado sistematica- mente a envolver - seja em que grau for, com este ou com aquele, muito ou pouco, nisto ou naquilo - em "análises" esgaravatadoras de passados ou de personalidades ou de factos ou de defeitos ou de qualidades. Tenho mantido sempre uma reserva que (desculpa!) me orgulha. Quero, quero mui- to, continuar intransigentemente a fazer uma coisa e outra. Ajuda-me! Porque eu não sei se o saberei fazer, se tu jogares de facto com o que chamaste «uma situação de vantagem, com circunstâncias a teu favor". 7- Releio isto e pergunto-me: para quê levarmos a discussão e as mútuas reacções por aqui fora? Para quê, para quê? Conversamos, dis- cordamos, falamos, discutimos ambos e ambos (como é justo e lógico) chegamos a um entendimento, a uma plataforma, a um relativo acordo. Imperfeito? Pois claro, que outro seria impossível! (Seria e é!) Teriamos com toda a certeza muito ambos ainda a dizer, hoje e amanhã e depois. Vem meu Pai ou o [N] e dizem: - mas a [N] também deve ir para o Porto, estás a sacrificá-la! Virão tua Mãe ou tua Irmã e dirão qual- quer outra coisa. Etc. E [...] de cada vez vamos nós dar-lhes ouvidos e reabrir a discussão e a ferida? Até onde? Até quando? Em que termos? Em suma: eu entendo decididamente que não. É por isso que te escrevo isto tudo; para nos pouparmos nova conversa no domingo e outra no outro e assim sucessivamente. Não pode ser. Nem tu (nem eu) temos saude para isso. No domingo (vindo tu cá) quero descansadamente ver as nossas filhas, conversar com elas, encher-me da alegria de as ver, de conviver um pouco de nada com elas, como não tenho feito. Agora o que importa não é discutir mais. É que tu própria ajudes, facilites a que a [N] vá para o Porto tal como discutimos, tal como já acordamos, tal como sempre nos garantimos, tal como a situação o exige - e tu sabe-lo. Eu, por mim, bem tens visto , quanto tenho respeitado, facilitado e ajudado a concretizar outros acordos, também relativos, também imperfeitos, mas a que já chegamos: pronto! Sobre isto é tudo. Não tragas mais livros porque ainda não despachei estes. Eu depois digo-te qualquer coisa. Não te esqueças também do que tão claramente te disse sobre as coisas que deves ou não deves trazer-me. Queria-te pedir se conseguires lembrar-te donde estarão as fotos e os slides que nós tinhamos; sobretudo as fotos que chegamos a colar num album. A minha Mãe não as encontra. Tê-las-ás tu? Estarão na [N]? Vê se te lembras. A tua saude? Achei-te magra e abatida. O exame de estenografia correu-te bem? Eu julguei que era na sexta feira passada, mas afinal deve ter sido adiado para 2a feira: que escola esquisita! Eu cá estou, razoávelmente saudável, razoável bem disposto, já com saudades desses pirralhos que são nossos. Diz-lhes que as amo muito, que as beijo muito, que as mimo muito, que lhes quero muito. Eu escrevo-lhes uns postalecos. Beijo-te [N] P.S.PS - Como já sabes, impõe-se que os dentes da [N] sejam urgentemente chumbados, etc. Como sabes parece que a besta da criada da tal colega da [N] a humilhou fortemente. Vê se te apercebes destas coisas e nestes dois meses apoias e dás força e carinho à miúda. [N] Contexto Prisão Palavras Chave Tipo: crítica Suporte Material Suporte:
uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Créditos Transcrição: Cristina Albino Discorda da nossa leitura? Por favor escreva-nos: cardsclul@gmail.com |
|