1971. Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa]. FLY0010

FLY0010
Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa].

Data
14/04/1971

Referência Arquivística
N.A.
Arquivo Privado, Arquivo Privado, FLY0010, Fólios [1]r-v

Resumo
O autor, a propósito de um problema de saúde de uma das suas filhas, desenrola uma série de reflexões filosóficas sobre a condição humana. Cita várias vezes Fernando Pessoa. Com o seu discurso, espera convencer a destinatária a mudar atitudes preconceituosas na sua conduta diária.

Local
Peniche

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Autor | Destinatário | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Fl. [1]r

Peniche,

14. Abril. 1971

[N]:

Tenho continuado à espera que me digas qualquer coisa da nossa [N]. O perigo de séria infecção nos rins é real: a análise não devia ter sido retardada. Um acidente, sempre possível,
teria ainda remédio? Que nos diríamos, que te dirias, [N]? Avisa-me quando a [N] chegar; abandona as ideias retrógradas de que "cuidados a mais, até na higiene (!??!), fazem mal".
Manda-as acompanhadas para o colégio. O desenho da [N] apareceu num livro. Compra-lhe, peço-te, o tal macaco que pede. São tão pequeninas, tão minhas!

Enviei-te na 2a feira uma encomenda com o livro do F Pessoa: acusa a recepção. O saco que tinha o tal casaco de malha é da CRISEL, Rua Ferreira da Silva, 10-A (junto ao cine-
ma Império). Agradeço-te todos os mimos que trouxeste, todos muito bons. Meu Pai fala-me na tua carta: obrigado também.

Como te correu, [N], esta Páscoa de 71? Escreve-me, diz-me que bem! Todos os paralelismos são quase sempre superficiais, extrínsecos; e, no entanto, sugestionam-nos, por
vezes até ao excessivo. A mim, correu-me bem; falando muitas vezes contigo (é dificil falar sozinho), remoendo frases, fugindo a imagens. E, no entanto, desapiedadamente justo
comigo mesmo; contente por isso, contente porque certo e despido de mim. Sem "mas" nenhum. Como uma coisa que se sabe há muito segura; coerente tambem c situações.

Há meses que ando a ler uma história universal mediocre, em 20 volumes. (Vê lá tu! Ainda me sucede, como ao personagem do Eça, dizer depois "escapou-se-me tudo").
Ao longo de páginas e páginas, vão sendo engolidas gerações e gerações. (cartas quase iguais às que hoje se cruzam, foram já escritas. Transcreve a tradução d uma, gravada em
placas de argila há não sei quantos milhares de anos: um homem escreve a uma mulher perguntando-lhe d um filho, dos parentes, falando-lhe do seu amor, dos seus projectos
e das suas preocupações. Montanhas anónimas de pó! Para quê? Às vezes, estremeço e caio no Pessoa: "Sempre uma coisa defronte da outra / Sempre uma coisa tão inutil como a
outra / Sempre o impossível tão estúpido como o real/ Sempre o mistério do fundo tão certo como sono de mistério da superfície / Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra!"
Mas não é exacto: não foram pó que ao pó regressou; não foram nada acumulando-se sobre coisa nenhuma. Tudo isto, até estes versos de Pessoa, até estas palavras, até esta inquieta-
ção angustiada, até estas grades, criaram e acumularam. Estão aqui connosco, todos, neste nosso mundo e em nós. Lembro uma frase que citaste sobre as tendências "naturais"
do homem. (Lê o livro para te dares conta do quanto se pode adulterar). É do século XVIII essa óptica de que a "civilização" afasta o homem do que lhe é natural! Pura idealiza-
ção a substituir uma outa mística! A história do homem não é senão a história natural d uma espécie animal: a espécie humana. Bicho sui generis, a sua história é com-
plexa, mais rápida, multiforme, sujeita a leis também específicas. Mas ainda e sempre uma história "natural": que outra coisa poderia ser? Dito d outra forma, a natureza do homem
constroi-se num processo histórico; não é qualquer coisa de fixo, transcendente: é o que historicamente vai sendo. É tolo - e é mau - reduzir a natureza do homem à bestialida-
de primitiva: ao viver em hordas, à meia duzia de gritos guturais, à promiscuidade, à ainda animalidade do comer, do habitar, do sentir, do amar, do pensar. Natural
também não se confunde com instintivo: negaríamos a realidade palpável do que melhor construimos e somos - ou podemos ser. À tua pseudo--citação " contraponho esta: "é numa
fase adiantada da história do homem que se desenvolve e se produz pela primeira vez a riqueza sensorial "humana", o ouvido musical, a vista sensível à beleza formal,
em suma, os sentidos capazes de gozos já "humanos". O homem constroi-se a si-próprio humano" Outras citações ainda mais explícitas eram possíveis. O erro é em-
pobrecer a natureza humana fixando-a num certo homem d uma dada étape histórica. O crime é cobrir com o manto do "natural" (logo inevitável, logo bom) intuitos ou sen-
sibilidades ou erros ou caracteristicas grosseiras e mesquinhas - quantas vezes, afinal, apenas a própria imagem; ou, dito d outro modo, mascarar de "natural" o que é
já rejeitado pelo próprio homem, o que é já hoje historicamente desumano. Abre-se o caminho ao que se quer e a tudo...

Em quase todas as épocas, grupos de homens buscam para a vida um sentido alheio ao facto essencial de pertecerem à especie humana - ao que chamamos huma-
nidade. E encontram-se sós, angustiados perante a morte. Alguns, atiram-se à conquista cega d uma felicidade a curto prazo, agora e aqui, porque a morte é imprevisivel-
mente certa. Foge-lhes a juventude, fogem-lhes os dias. Velhos, velhos, fazem constantemente as contas ao que ganharam ou perderam: e sempre se perdem por inteiro. Desenfreados
Fl. [1]v
brutalizados (com mais ou menos verniz supra-espiritual ou supra-sensível), afundam-se em qualquer ópio: no haxixe ou na sensualidade ou no vinho ou no jogo ou em qualquer coisa,
mais ou menos idêntica. Tentam atafulhar em cada momento uma eternidade que lhes foge. Revelam por vezes a lucidez de quem sabe que apenas se atordoa, de quem sabe se um
produto alienado e quase sem culpa d uma humanidade que se constrói dividida. "Cadaveres adiados que procriam" - ainda F Pessoa. O fenómeno atinge, porém, expressões
mais significativas e complexas em dados momentos históricos: na decadência grega ou romana, no seculo XVII da Inglaterra ou XVIII da França, etc: um pouco em toda a
parte, quando esta história tumultuosa que fazemos põe em causa valores estabelecidos e simultaneamente aliena e destrói os laços dos homens com o humano; quase sempre, preci-
samente nas épocas de rotura em que, num outro polo, transparece um homem mais humano, se afirma mais rica e exemplar a construção da grandeza inequivoca do homem.
Hoje, tambem e mais do que nunca: é o mundo marginal dos hippies, dos provos, dos blusões negros, e o resto - que, afinal, apenas condensam com maior viru-
lência, com num abcesso, a desorientação de largos estractos. Mas as caracteristicas são ainda idênticas: a desumanização, agora desenfreada, a solidão vazia vazia, o esgo-
tamento, a loucura, o suicidio - fisico ou não. Alienados no individualismo vazio, no gozo epidérmico, saltitantes e instáveis na busca do prazer fácil, acordam cada
vez mais sós, mais mortos, mais condenados. Não é uma conclusão moralizante que formulo; é a constatação do logro, da total ineficácia para construir mesmo e sobretudo
uma qualquer felicidade pessoal, possivel apesar de tudo. O homem só se recupera humano identificando-se com os objectivos naturais (historicamente naturais) da
própria espécie: a ética humanista é válida porque é a única senda possível para essa identidade (contraditória, turtuosa e torturada, embora) do homem com
a sua humanidade. Eu sei: só se vive uma vida. Individualmente é muito importante, mas não conduz a nada dar-lhe um qualquer significado [...]
imediatista, de superfície, de flor-da-pele. O encontro com a morte é irrelevante para pedaços de uma humanidade que essa sim se constrói e perdura. Que cons-
truimos e em que perduramos. Naturalmente humana, breve radicalmente humana.

Escrevo-te aos supetões porque estou de faxina. Não, com certeza, com palavras abertas, não medidas, como gostava de te escrever. Mas acredita que te es-
crevo como gostaria um dia de falar à [N] ou à [N], isento, convicto, rebuscando dizer-lhes qualquer coisa de muito importante para a sua própria vida. Não
palavras para me esconder, não palavras para cobrir fraquezas ou erros ou qualquer outra coisa. Palavras esforçadas para comunicar com exactidão o que aprendi neste
"trânsito mortal". Porque contraditório, complexo, com isto ou com aquilo, tal como sou - não faço contas. Há meses, falando da tua Irmã, pedia-te que lhe dissesses que
há vinte anos estavamos certos. É da minha geração, talvez melhor do que tu apreenda o que quero dizer. Não, de modo algum, linearmente, não como se pode idea-
lizar em fábulas cor-de-rosa ou infantilmente. Nada disso. Também com fundos traumatismos, também com decepções radicais, apesar disto e daquilo e da-
queloutro e um pouco de mim próprio. Mas porque, nestas condições, neste tumulto todo, agora, o meu lugar certo é aqui.

Este papel tem limite. Tenho pensado por demais na [N] e na [N]. Escrever-te-ei no sábado mais longamente. Tenho que ser muito compreensivo, mas muito
realista. Tenho que combater este meu optimismo, afinal ingénuo, sobre as pessoas e as situações. Há um mínimo, [N], que tenho de agarrar. Não podes, [N],
não podes deixar de te manter fiel ao que sempre nos juramos sobre as miudas. Não há análises, apreciações, situações que o alterem. Não endeuses pessoas (como varias!)
nem louvaminhes situações ou a ti-própria. Tens tambem tu que te libertar dum egoismo fechado, do que seria uma insensibilidade. Tens de compreender os outros.
De compreender e sentir também. Tu, pela tua própria cabeça, porque és tu quem viveu tudo. Estou a falar-te da [N], da [N], de mim, da [N] de ti, da [N],
da [N], de meus Pais, etc - de pessoas como tu vivas. Pensa. Ambos temos que ser capazes de desatar este nó górdio. Temos, [N]!

Queria ainda insistir em que escrevas como "deves" a este homem que está preso. Queria perguntar-te da tua saude, do teu emprego (impossivel, afinal, há
uns dez anos), da tua Irmã, da tua Mãe, do que tens feito. E do resultado da analise da [N]. Escreve!

Abraços para tuas Mãe e Irmã. Milhões de beijos e de ternuras acumuladas nestes dois anos para as nossas filhas.

Beijo-te

[N]

P.S.

Fl. [1]r
P.S - Por causa duns livros, recipientes, etc - peço-te que me digas com antecedência quando cá virás. Diz-me tam-
bém se é teu um saco de pegas, castanho, tipo mala: é que não se sabe de quem é.
[N]



Contexto
Prisão



Palavras Chave

Tipo: pedido
História: prisão
Sociologia: família, saúde, cultura




Suporte Material

Suporte: uma folha de papel de carta pautado de 25 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da Cadeia do Forte de Peniche.
Medidas: 275mm × 211mm
Mancha Gráfica: sem linhas em branco entre a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Ana Guilherme
Revisão: Mariana Gomes
Codificação DALF: Ana Guilherme
Contextualização: Ángel Rodríguez Gallardo




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