1971. Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa]. De Peniche para [Lisboa]. FLY0011

FLY0011
Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa]. De Peniche para [Lisboa].

Data
14/12/1971

Referência Arquivística
N.A.
Arquivo Privado, Arquivo Privado, FLY0011, Fólio [1]r-v

Resumo
O autor procura resolver uma série de problemas que lhe foram expostos em carta anterior da destinatária. Eram problemas financeiros, de saúde, de educação das filhas e de relação com pessoas das famílias de ambos. Tenta influenciar as decisões da destinatária sugerindo-lhe, sobretudo, que se abra mais com ele.

Local
Peniche

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Autor | Destinatário | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Fl. [1]r

Peniche,

14. Dezembro. 1971

[N]:

Recebi hoje, ao fim da tarde, a tua carta. Sinto, eu próprio sinto, a necessidade de pensar mais nalgumas coisas
da tua carta, de procurar apreender melhor a realidade que me tentas transmitir. Mas das duas uma: ou te escrevia
hoje, correndo o risco de o fazer menos ponderadamente: ou te escrevia apenas no sabado, correndo o risco de pare-
cer não ter ficado sensibilizado. Estiveste doente com quê?

Queria começar por te dizer quanto considero essencial que, num conjunto de questões, saibamos fazer per-
durar franqueza nítida, sem cerimónias, sem preconceitos também. Quanto seria artificial - penso-o - banir
uma amizade que se quer lúcida mas se quer também solidária. Por milhões de coisas óbvias.

Tenho-me esforçado porque se concretize efectivamente a ajuda material da minha familia à [N]. Calculas
quanto sofro com a situação que, agora, descubro. Só te posso dizer que me irei esforçar por alterar as coisas.
Dentro do que posso - que é pouco, mas é alguma coisa. Talvez eu devesse, por mim, ter descoberto mais
cedo. Talvez, não sei. Sei que também te culpo d um silêncio que só um preconceito artificial, "tea-
tral", pode justificar. Escrevo hoje ao meu Pai. Peço-te, peço-te mesmo, que me mantenhas informado
da situação, que seja comigo que trates essa questão. Hoje já não me é possível escrever aos
outros meus irmãos, mas irei fazê-lo no sábado, nos termos que acho exigirem-se.

Desta tua carta, fica-me uma impressão de meias-palavras. Eu compreendo que não é
facil, nada facil, usar as palavras inteiras. Mas talvez também em muito te deixasses dominar pela
interrogação «Mas para que te conto tudo isto?». É-me assim dificil detectar problemas e saber, ao
fim e ao cabo, o que hei-de fazer, o que devo fazer. E [...] perceber completamente a real situação.
Procurando ser eu concreto, ponho-te claramente a questão: o que é necessário, [N]? Concretamente,
exactamente? Perguntei-te já mais do que uma vez. Hoje repito-o com toda a sinceridade,
sem qualquer intenção ou espirito que não seja ajudar-te e ajudar a [N].

Falas-me do teu emprego. Sentes necessidade de mudar? Necessitas de alguma ajuda
concreta nesse sentido? Responde com franqueza e sem preconceitos. Se puder ajudar-te, no que
puder ajudar-te, sabes - julgo que sabes - que o farei: É evidente.

Em Qquanto pensas necessário ajudar a [N]? Em concreto, quanto pagas mensalmente
no colégio da [N]? Perguntei-to várias vezes: porque não respondes? Não se trata de responderes
Fl. [1]v
ao meu Pai; trata-se de me responderes a mim, ao pai da [N]. Porque não hás-de ser franca?

Quanto à ajuda da tua irmã, eu expliquei-te porque fazia questão de resolver o assunto através da [N]. As razões são
várias e mantem-se. Aliás tomei medidas nesse sentido, como te disse: peço-te que não leves de modo algum a mal, porque seria
de todo infundado. Creio mesmo que o assunto já está resolvido. Como compreendes, seria longo voltar a expor todas as razões da
minha insistência numessa solução, mas em síntese posso dizer: é a solução que está de acordo com a trama de relações reais
existentes hoje; é a solução que corta pela raiz confusões possiveis, ambiguidades, etc.

(Meto aqui isto: pouco me dizes sobre a [N]. Como está? Que diz? Que faz? Saude? Disposição, etc?
De que precisa a [N]? Roupas? Livros? De que precisa a [N]? Tiveste possibilidade de lhe dar qualquer coisa em
meu nome ou não?) Ainda sobre a ajuda da tua irmã: Acho uma loucura teres adiantado o que não tinhas!
E maior loucura seria fazê-lo agora, quando o problema já está resolvido pelo menos para mim. Não percebo
porque o fizeste, a não ser por uma preocupação tola. Por outro lado, também não percebo porque ainda não
falaste com a tua irmã: não seria dificil estares em dia com problemas desses se também não houvesse algum
desleixo da tua parte. Só se estiveste doente! Mas não sei, não sei.

Sobre a [N] passar o Natal em Lisboa: escrevi, como aconselhas, à [N] e, indi-
rectamente, à [N], pedindo opinões com urgência. Eu próprio não a tenho: por um lado, vejo toda a vantagem, em multi-
plos sentidos, em que a [N] mantenha vivos os laços contigo, com a [N], com a Avó [N], etc; por outro lado, sou-te franco,
não sei se isto poderá ser prematuro, sobretudo para a estabilidade emocional da [N] e também para a tua, [N].
Sobre a tua opinião nada dizes: que pensas tu, [N], ponderadamente? Dir-te-ei depois o que me disserem e
tiverem concluido, mas é importantissimo que tu, Mãe da [N], digas o que pensas e sentes. Com franqueza aberta.

Quanto à tua possível visita há o seguinte: todos os presos vão ter uma visita em comum no Natal - Ano Novo, isto é, entre 20/XII e 10/Jan.
Terei que comunicar antes o dia, a hora e as pessoas prováveis. Gostaria muito que a [N] e a [N] cá viessem. Escrevo hoje à [N] e ao meu Pai a co-
locar a questão: não sei se podem vir, quando podem, etc. Espero resposta. Mas, de qualquer modo, talvez a tua vinda pudesse coincidir, indo ao encontro
dos termos exactos da tua sugestão e oferta. Que pensas? Que dias poderás? Diz-mo para que eu possa coordenar as coisas e dizer-te depois o que houver.

Releio a tua carta e fico aflito. Não tenho já tempo para te escrever outra carta. (E não sei se o devia). Perturba-me
muito a frustração, o cansaço, o desencanto que se pressente nas palavras que tu propria te arrancaste, em toda a tua carta. Que é isso
de espirito acomodatício, de autoprivação, de fome? Que mudança é essa que se adia e adia? Para que situação económica "aflitiva"
te deixas arrastar? Para onde vais? Para onde queres ir - ou, talvez, para onde "acomodaticiamente" consentes que te empurrem?
Não sei que te dizer: não sei mesmo. E, no meio disto tudo, o que fazer por ti e pela [N]. Não sei.

Escreve sem preconceitos, com sinceridade, de modo a que eu perceba o que não percebo. Escreve mesmo!

Beija-me e beija-me e beija-me ainda a minha [N] - a quem amo cada vez mais até por esta dis-
tância e esta ausência toda.

Abraço-te com força

[N]




Contexto
Prisão



Palavras Chave

Tipo: instruções
História: prisão
Sociologia: família, educação, condições económicas




Suporte Material

Suporte: uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Medidas: 275mm × 211mm
Mancha Gráfica: sem linhas em branco entre a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Ana Guilherme
Revisão: Mariana Gomes
Codificação DALF: Ana Guilherme
Contextualização: Ángel Rodríguez Gallardo




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