1970. Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa]. FLY1042

FLY1042
Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa].

Data
29/08/1970

Referência Arquivística
N.A.
Arquivo Privado, Arquivo Privado, FLY1042, Fólios [1]r-v

Resumo
O autor queixa-se da desilusão que teve quando soube que a mulher e a filha não o iriam visitar. No entanto, mostra-se compreensivo em relação a essa falta, justificada por causas familiares. Aconselha a destinatária quanto à sua conduta na relação com a família por afinidade e reitera-lhe o seu amor. Refere um problema financeiro e demonstra como conta com a ajuda do pai para o resolver. Pede também uma haste de óculos, especificando a marca.

Local
Peniche

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Autor | Destinatário | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Peniche,

29. Agosto. 1970

Meu Amor querido:

Lançaste-me o dilema para os braços. Inicialmente vieram ao de cima problemas pessoais e não o compreendi muito bem. Deixei-
-me levar pelo sentimento de decepção de não vires cá, de não te ver, de não podermos conversar, estar, apesar de tudo, alguma coisa juntos. Tenho sauda-
des tuas; apetece-me ouvir o chilrear da [N], as suas boquinhas, as suas poses tão delicadamente femininas já. Depois, contava contigo, vivera a tua visita
como um facto real que os dias avizinhavam. Sobretudo queria ver-te, estarmos.

Chegou-me há meia-hora a tua carta, talvez um pouco mais. Pouco a pouco, não pude deixar de considerar outros factores;
acabei por concluir que, mais uma vez, tinhas razão; que me competia decidir a mim. Eu sei que não há outra saída senão dizer-te que vás ao
Aeroporto; que não vale a pena resistir a uma solução que é a única possível. Penso no quanto amo a [N] e a [N] e a [N] e a [N] e não
me posso excusar [...] a telegrafar-te a dizeres que vás ao Aeroporto. (É o que faço agora). Custa-me muito, arrepelo-me, mas não tenho outra coisa a fa-
zer. Não sei qual o estado de saude dos meus Pais, particularmente de minha Mãe; podem impor-se quaisquer medidas de auxílio, de préstimo e não
quero que o deixes de fazer mesmo com o meu sacrifício. Preocupa-me, aliás, seriamente, como tantas vezes te disse, o estado de saude de meus Pais - e
esta longa viagem não lhes há-de ter feito muito bem. Nem mesmo psicologicamente: repara, de certo modo, foram "despedir-se" do filho e
dos netos. E não deve ser facil para ninguém despedir-se assim, com a noção premediata e irrecusável de que se despedem, de que é isso que vão
fazer. Isto doi-me, aflige-me porque nada posso fazer, nem mesmo posso negar que as coisas são assim. (Que balanço dão da vida? Como reagem
por dentro a essa certeza de poucos, inevitavelmente poucos anos?).

Mas não é só isso, [N]. Tambem pesa o facto de desejar muito que as vossas (tuas e de meus Pais) relações se normalizem,
a um nível de razoável convivência (mesmo que distante). Tu não ires, teria um significado "simbólico", cheio de implicações e agravos que é
preciso evitar, mesmo com o custo de não te ver, de não ver a [N]. Peço-te que, sem cedências que não defendo, faças o que estiver na tua
mão para diminuir desentendimentos e questiúnculas. Mas sem cedências que te repugnem ou que só agravariam situação futura. Penso, por exem-
plo, na nossa [N] que deve continuar a viver contigo, que não deves deixar admitir, ou sonhar sequer, que possa viver longe de ti. Nem vale
a pena discutir ou dar muitas razões: és a Mãe e pronto. Com delicadeza, com sinceridade tambem, mas com firmeza defende a tua personalidade
e a tua vontade; sem causar feridas, mas sem transigências. Estás certa e eu amo-te - é o que importa. É isso mesmo: é uma no cravo
e outra na ferradura! Mas tu entendes-me, sabes o que quero exprimir, como te quero defender de "absorções" entorpecedoras e como quero
que, sendo como és e eu amo, evites, tanto quanto possível (e às vezes não será possível), feri-los, magoá-los, etc. E também que te sintas magoada
ou vexada ou atingida quando não há razão para isso, ou há apenas uma razão superficial, de circunstância, de palavra puxa palavra.

Releio o que escrevi. Estive a convencer-me a mim próprio, penso. De facto, não foi só isso, mas foi-o em muito. No fundo
Fl. [1]v
[...] não é nada facil convencer-me que não vens cá, que não tenho uma longa conversa com a Carocha...

(No telegrama peço-te que não alarmes meus Pais com a saude da [N]. O [N] e a Mana é que estão em condições de colocar a questão
nos termos mais realistas e menos chocantes. Não achas tambem?)

Exageras, exageras e não é pouco. Há grande diferença entre as facturas e as tuas cartas. A primeira e a fundamental é que as tuas cartas
falam-me de ti, da [N], das coisas que me dizem respeito - e que nunca me são frias. Depois porque eu consigo "ver-te" a escrever-me, o que
vais pensando, às vezes hesitações que tens, às vezes o que queres dizer mas achas que deves dizer só um bocado, etc. Muitas vezes, eu sei-o, me hei-de
enganar, mas, de qualquer modo, é divertido: surgem-me expressões tuas esquecidas, situações, nossa vida.

Emprego. Bem, não digo mais nada. Só que ordenado baixou bastante; só que perspectiva de aumento deve lá ser nula
ou quase nula, enquanto no actual emprego não o é. Bem, tu é que sabes. Não idealizes de mais, para não sofreres depois desilusões,
mas resolve de acordo com o que vires claramente.

Então a blusa que te dei? Porque é que não dizes nada? É para me fazeres a surpresa ou a surpresa é outra?

Sobre a escola das miudas. Fiquei "furioso" comigo mesmo. Podias ter posto o problema com clareza e [...] antecipadamente,
mas eu também o podia ter resolvido sem estar à espera. Conto ter, por estes dias, visita de meu Pai: se tiver coloco-lhe a questão mui-
to clara e instantemente (SÓ NÃO SEI QUAL É O CUSTO EXACTO MENSAL...). Se não tiver, quarta-feira escrevo-lhe a ele e aos meus irmãos e o
assunto resolve-se quase com certeza absoluta. Se não se resolver terei que tomar outras medidas, mas não será necessário, julgo. Podes estar
absolutamente certa disso. Eu é que, confiando em que me dizias qualquer coisa, não supunha (ou melhor, nem pensei nisso) que era necessá-
rio pagar já no acto de matrícula ou de inscrição. (E se calhar não é; tu é que temeste que fosse).

Dizes "Todos os meus beijos para ti (coitadinha da [N]!)". Não percebo. E a [N]? Coitadinha da [N] que a
Mãezinha dela, de quem tanto gosta e ama, esquece-se de falar nela. Fia-te nessa fiteira da [N], que depois vais ver. Até já sabe contar
até 30, a finória. Alguma coisa tem em vista, acautela-te! (E a fotografia que eu pedi indirectamente à [N]? Eu vingo-me!)

Há uma coisa muito importante. Escreves: "Recebi resposta à carta que escrevi há tempos. Espero que se vejam os resultados". Não
sei a que te referes, ou melhor, [...] suponho que [...] só te podes referir ao requerimento que fizeste. É? Se é, peço-te com urgência que me
mandes dizer exacta e explicitamente a resposta que recebeste. É um assunto que, naturalmente, me interessa.

Outra coisa importante que só a ti posso pedir: uma haste de óculos, marca "PERSOL-RATTI" - 14,5 cms. É para substituir a que
está partida e que, por mais que eu faça, não tem concerto decente. Desculpa o trabalho, mas vê se te é possivel.

Sabes que mais: não me conformo com a ideia de que não vens cá. Foi um balão coloraido e vivo e lindo que rebentou,
subitamente. Estou danado, trite, tramado. (Nem me disseste o que fizeste no sábado e domingo passados...). Enfim, aproveita o tempo,
descansa, passeia, escreve-me, diz-me o que fazes, conta-me da [N], da tua Mãe, do teu emprego. Pensa que te amo e que nada do
que me vem de ti me pode parecer impessoal e frio. Pensa que é funda a alegria com que leio notícias tuas. Pensa que tenho saudades
tuas e da [N] e da [N] e que estou todos os dias, um pouco, convosco, em vós. Todos os meus beijos para ti (coitadinhas da [N] e da
[N]). Com muito amor,

teu

[N]




Contexto
Prisão



Palavras Chave

Tipo: queixa
História: prisão
Sociologia: família, educação, emprego, condições económicas




Suporte Material

Suporte: uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Medidas: 275mm × 211mm
Mancha Gráfica: sem linhas em branco entre a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Leonor Tavares
Revisão: Mariana Gomes
Codificação DALF: Leonor Tavares
Contextualização: Ángel Rodríguez Gallardo




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