1973. Carta de amizade de um exilado em Itália para uma amiga. De Florença para Lisboa. FLY1567

FLY1567
Carta de amizade de um exilado em Itália para uma amiga. De Florença para Lisboa.
Carta parcialmente transcrita. O texto completo é de acesso restrito. 

Data
19/12/1973

Referência Arquivística
N.A..
Arquivo Privado, Arquivo Privado, Fólios 1r-12v

Resumo
O autor conta como falou com os pais por telefone e lhes pediu o envio dos pertences pessoais; escreve sobre os seus passeios e sobre a busca de um curso universitário em Florença.

Local
Florença

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Autor | Destinatário | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Fl. 1r

Firenze

19/12/73 - 11.10 h.

5

Querida [N]

[...]
Fl. 2r
[...] Das coisas mais importantes que
conclui desde que cheguei aqui é que
uma separação um tanto radical e
efectivamente longa duma pessoa em
relação ao seu meio, ao seu "mundo",
revela sempre quais são as pessoas
desse meio de que, aquela que parte,
ama, pelas quais se interessa e preocupa[...]
Fl. 4r
[...] Como fizeste em relação às coisas
que eu pedi para tu separes, no
meu quarto? Penso que foi precisa-
mente na carta N 1 que te enviei
uma lista do que devia ser separado
e preparado para me ser enviado
[...] quando houver possibilidade[...]
Fl. 5r
[...] A lista é a seguinte: (q me lembre)
xxx casaco de pele de antípole
xxx sapatos castanhos
xxx botins
xxx sapatos pretos
casaco de lã (Nazaré)
x calças pretas
camisa verde clara de manga curta
calças rosa velho
saco cama
bolsa preta c canetas
o que está assinalado faz-me uma
falta fundamental. [...]
Fl. 6r
[...] Já agora, desculpa, mas
se não te importas diz-lhe que, se
puderem me mandem o mais depres-
sa possível o dinheiro que me devem
[...]- cambiado
em LIRAS, porque aqui é quase impos-
sível cambiar dinheiro português e
perde-se muito na troca. Esse dinheiro
está a fazer-me uma falta bastante
grande.
Fl. 7r
[...] Já fui à Universidade [L]. Surpreendeu-me um pouco.
Por um lado é um ambiente um
pouco fechado, selectivo, com um
equipamento didático estupendo
e um limite máximo de inscrições na (esta
escola funciona numa villa, um
palácio barroco lindo, um pouco
retirado do centro da cidade) por
outro lado os cursos que aí se fazem
são só de 1 ano. [...]
Fl. 9r
[...]

Depois o David.

Não há palavras que descrevam.
Qualquer coisa de sobrenatural e
humano simultâneamente.
Entra-se na galeria da Academia de
Belas-Artes e está ao fundo. Durante
o caminho que é necessário percorrer,
dos lados estão os escravos
Fl. 10r
incompletos, são musculos, carne
que se destacam dos blocos pesados
de marmore, como que querem sair
daquela massa bruta e tornar-se
pessoas; uma luta imensa entre
a pedra e a vida. Ao fundo, com
uma cúpula por cima que o ilumina
está o David. Olha-se de baixo, ele
está lá em cima do pedestal, enorme,
belo, majestoso, inacessível até; ao
mesmo tempo tem medo, des-
denha, está abandonado, só, mas
quere-o. Nunca uma escultura me
fez percepcionar tanta pureza, tanta
força, tanta sensualidade como esta.
Ao lado, no transepto da galeria
um pequenino busto de bronze
de Miguel Angelo. Pode-se ficar 1 hora
ou 1 dia inteiro a olhar, só olhar.
Também os tumulos da Sacristia
Nova da Capela dos Médicis.
O dia, a noite, a aurora, o crepusculo-
- 2 mulheres, 2 homens - correspon-
Fl. 11r
dentemente: o medo, a dor, a desi-
lusão, a tristeza. É uma sala
pequena, de dimensões muito humanas.
Entra-se e parece mais pequeno do que
as fotografias mostram. Uma luz
muito coada, tudo na penumbra, é
um túmulo, um jazigo, dentro
estão estes quatro seres, meio deitados,
contorcidos ora analizados até ao
promenor ora sómente apontados
por um escopo. Um ar de silencio
de religiosidade, de eternidade.
O cantico lindo que vinha da missa
ao lado dava uma aparencia de intem-
poralidade, uma presença da vontade
do artista, uma perfeita funcionalidade
(imaterial) da obra concebida.

Sai-se e é toda a Florença que
existe desde sempre; até o mercado
de frutas, de verduras, de roupas que
está alí a 10 metros.

O turismo é a grande tragédia.
Pode dizer-se que os turistas não vêm
Florença, não a vivem; pretendem,
como se fosse possível, metê-la dentro
duma máquina fotográfica ou cine-
matográfica e mostra-la num
Fl. 12r
serão de família que raiva!!!

Por hoje acabo. Entretanto fui
à Mensa Universitária (cantina) almoçar
comi pasta al sugo (massa c molho
de carne e queijo ralado), escalope
de porco panado c salada de alface
e uma pera (c casca). Tudo por
400 liras (10$00) o q é aqui ao preço
da chuva.

Mais logo, farei o meu habitual
passeio ao Arno, à ponte Vecchio.
Que lindo que é o Arno!

As pessoas, a cidade vivem mais o rio
que aí em Lisboa. Penso que como
o tejo é um rio de grande estuário,
é inteiramente aproveitado para
navegação, sendo assim, as suas
margens estão transformadas em
cais. Aqui, não, o Arno é um rio
onde se pesca, ou se se passeia de
barco, a água que faz falta à
paisagem da cidade (não se pode tomar
banho - a poluição estraga a poesia toda!)
[...]P.S.
PS
Fl. 12v
PS - Infinitamente agradecido
pelos "Eugénios" de Andrade[...].



Contexto
Exílio



Palavras Chave

Tipo: notícias
História: exílio
Sociologia: família, educação, comunicação, condições económicas, emprego,cultura




Suporte Material

Suporte: 12 folhas de papel de carta escritas no rosto, à exceção da última, escrita de ambos os lados.
Medidas: 269mm × 160mm
Mancha Gráfica: sem linhas em branco separando a fórmula de endereço do início do texto.




Créditos

Transcrição: Leonor Tavares
Revisão: Leonor Tavares
Codificação DALF: Leonor Tavares
Contextualização: Ángel Rodríguez Gallardo




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