1971. Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa]. FLY2026

FLY2026
Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa].

Data
22/01/1971

Referência Arquivística
N.A.
Arquivo Privado, Arquivo Privado, FLY2026, Fólios [1]r-v

Resumo
O autor minimiza angústias que a destinatária lhe terá confessado por carta. Faz-lhe uma série de pedidos sobre o cuidado a ter com as filhas e sobre a relação com pessoas de família. Recomenda um livro de Eça e termina mencionando encomendas que gostaria de receber na prisão.

Local
Peniche

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Autor | Destinatário | Notas | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Fl. [1]r

Peniche,

22. Janeiro. 71

Querida [N]:


Sento-me à mesa, releio a tua carta e vou-me sorrindo. Dir-se-ia que não vives, transitas! Casa-emprego, emprego-casa,
and so on... E ainda te esqueceste da escola. Não é bem assim, minha cara. Para além disto e nisto existes: existes em casa,
existes no emprego, existes na escola, existes nos transportes, existes, em suma, nisso a que chamas "restante rotina". Eu sei que não é
nada natural que descubras a pólvora ou topes com qualquer acontecimento raro e refinado, deslumbrante, valendo por si mesmo
uma alta obra narrativa, definitiva e gloriosa nas letras. Mas também a mim não me interessa muito a descoberta da pólvo-
ra ou uns novos Lusíadas. Interessas-me tu (se mo permites!), a tua vida, essa rotina, esses pequenos convívios, esses pequenos
acidentes que passam desapercebidos e dos quais - como toda a gente - vives, sentes, pensas. O mesmo te poderia dizer desses
assombros que são as nossas meninas, a quem muito amo, de quem gostaria de conhecer (e de viver) as tais gra-
cinhas, o seu espanto deste mundo, as birras, sei lá. Eu sei que não são gracinhas nem birras dignas da
futura história desta década de 70, neste século XX. São coisas provavelmente vulgaríssimas de vulgares miúdas
Assucede que essas miúdas são minhas filhas e, por isso, únicas, espantosas, tudo quanto quiseres. (A que se acrescenta
uma saudade muito profunda delas; não bem saudade, mais um vazio doloroso.) Queria escrever-lhes, mas não tenho
em quê: percebes?

Mas eu vou-me conformando com essa tua "alergia" epistolar. O que é natural é que, como
doença que é, seja contagiosa...

Mas já não me conformo com a ausência de elementos sobre a [N] e a [N]. Porque tinha a [N]
febre e dores de cabeça no domingo? Quais as consequências da varicela na [N]? Que diz o médico? Insisto, [N],
leva-me as miúdas ao médico. Sê razoável e sensata! Eu já não digo todos os meses, mas uma vez de quando em
quando: serem vistas por um pediatra, fazerem uma revisão geral à máquina só para a gente sossegar: não achas?
Tu propria quantas vezes, penso eu, não hás-de sentir a necessidade desse sossego de consciência...

Não te escrevi na 4a feira; também não escrevi à [N] - a quem tencionava, um pouco em teu
nome - dizer-lhe que aparecesse, que desse noticias, que não se esquecesse das sobrinhas. Escrevo-lhes a todos,
inclusivé a meu Pai. Meu Pai queixa-se de falta de noticias tuas, das miudas... Que falta de tempo tu tens! («o
problema do tempo ressurge», dizes tu). Eu conheci um sujeito que tinha redigido uns postais "tipo", género formu-
lário, a enviar. É o que tu precisas. A sério, o que te custa escrever, de quando em quando, um postal para

Fl. [1]v
o Porto, perguntando se estão bons e desejando saude, dizendo da tua saude e das miudas, mandando cumprimentos e saudades?
Que tempo te levará, ó estenógrafa, escrever à [N]: "[N], que é feito de ti? Tenho telefonado para o emprego, mas
não te encontro. É-me dificil passar por tua casa, mas porque não telefonas nem apareces? Diz-me como está agora
a tua saude. Se te puder ajudar em alguma coisa, diz. Nós bem. Abraços das primas e da tia". Bem
espremido, com muito vagar e alguns cigarros pelo meio, digamos: 10 minutos! E a resposta à [N]?

Não percebo esse teu emprego: por um lado reclamam e conseguem o subsídio patronal para as refeições, mas não o dão
aos próprios empregados!!! Tens que ver isso. Como tens que ver essa coisa do fim do tempo experimental: agora tens mesmo que entrar
no quadro, integrada num acordo ou num contrato colectivo, com regalias, tempos de promoção etc. Vê se me abres esses
olhos. Teres o curso de estenografia ou não é secundário. Não vás em conversa fiada, até porque os directores podem
mudar. Tem isto em conta.
Bem, não me posso esquecer de te dizer que quero ver a prenda que te dou pelos teus anos: não comeces às voltinhas.
E a propósito, admitindo que possas perder a agenda, repito as caracteristicas da esferográfica que te pedi: Montblanc, 4
cores, com quatro cargas sobresselentes (uma de cada cor); atenção: não sei se há douradas, mas não quero dourada p.
E, não esqueças, que as cargas sejam mesmo Montblanc, senão não prestam.
Lá te resolveste a trazer-me comestíveis vários. Não te posso dizer que não prestavam ou que não gostei porque
seria falso. Mas posso repetir que não vale a pena, que não quero, que não quero, que não quero... (supõe um disco partido).
Os pickles, sim. Quando sentires essa vergonha (que ridiculo) de não trazer nada, traz-me, além de ti e das
miudas, Nescafé: afinal continua a não haver outro processo de tomar cafe!
Quando cá vieres, mando-te entregar uns livros: guarda que são nossos.

Tenho andado a ler um livro encantador: "Uma campanha alegre", do Eça, EoEu só conhecia meia duzia
de trechos. São artigos de jornal, muito curtos, verdadeiramente espantosos de ironia, de acerto critico, de
contundência. Aconselho-tos vivamente, até porque se torna possível lê-lo aos pedaços, não exige continuidade de
leitura, precisamente porque são artigos independentes e muito curtos. Na biblioteca do sindicato deve haver.

Chega agora a tua Mana. Chega? Dá-lhe um abraço forte por mim, enquanto eu não lho
puder dar. Teremos que ver depois porque eu estou convencido que será possivel vê-la numa visita
mesmo antes de nós casarmos. Nem podia ser te outro modo.

Abraça-me a tua Mãe, com os meus votos de saude.

Beija-me e acarinha-me com todo o amor as nossas filhas.

Beijo-te tanto quanto aprontamente

Teu

[N]

P.S.
P.S: Espero que tenhas enviado o requerimento à Presidencia do Conselho como combinamos. É muito
importante. Falaremos no dia 31. Penso que deverás requerer quinzenalmente até obteres uma resposta qualquer
que ela seja. Agora vou mesmo até ao fim e muito a sério.. Aliás também a meu Pai que o faça.
[N]



Contexto
Prisão



Notas
Uma da filhas do autor da carta terá feito os desenhos a lápis dispostos no manuscrito.



Palavras Chave

Tipo: pedido
História: prisão
Sociologia: família, saúde, emprego, cultura




Suporte Material

Suporte: uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Medidas: 275mm × 211mm
Mancha Gráfica: sem linhas em branco entre a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Mariana Gomes
Revisão: Leonor Tavares
Codificação DALF: Mariana Gomes
Contextualização: Ángel Rodríguez Gallardo




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