FLY1039 Data Referência Arquivística Resumo Local Cartas relacionadas Download XML Download em formato PDF |
Texto Peniche Meu Amor: Estou com saudades tuas, pronto.Deliciaste-me com o teu postal. Não consegui resistir ao encanto (só tu!) de te ver a escrever dois postais, em vez d uma carta, porque a carta exige (!!?) rascunho, e ainda a parecer que aproveitavas naturalmente, com grande expontaneidade, vários mo- mentos do dia para ires escrevendo. Nem remetente puzeste e eu gostei. Sobretudo porque te senti confiante, alegre, "desini- bida e senhora de ti". Quase não resisti à tentação de te enviar um telegrama e exprimir tudo isto. O proprio facto de saber que ias à praia com as nossas miudas e a nossa Mãe, me consolou do desgosto de te não ver. Li no Século Ilustrado da semana passada as andanças e os atropelos inevitáveis para ir às praias dos arredores de Lisboa; vai daí, puz-me no domingo a imaginar-vos aos encontrões, quase desfeitas, felizes, queimadas, exaustas. De certo modo, fui também e, além disso vinguei-me... É claro que não consegui deixar de me preocupar com a idade da tua Mãe, a rabiteza das miudas, etc. Só depois preocupado porque a [N] disse que te telefonara e lhe disseras que a tua Mãe estava doente. Ainda quero supor que tivesse sido apenas uma desculpa, mas não consigo convencer-me. Preocupado com a tua Mãe e triste ao ver ir por água a baixo o vosso passeio, a alegria das miudas, a satisfação da tua Mãe e a tua. Não sei o que tens previsto em relação à saude da tua Mãe. Talvez pensando um bocado não fosse dificil concretizar a sua ida a um médico especialista competente e indicádo. Não há problemas, penso eu, em arranjar apresentação para um médico, pelo meu Pai, pelo [N], pelo teu cunhado, pela tua amiga [N], etc. Também é fácil pedir à [N] ou a qualquer outra pessoa (à tão tua amiga [N], por ex) para ficarem uma tarde com as miudas, se for esse o problema; a ti também não deve ser impossí- vel faltar uma tarde para ires com a tua Mãe (ou já és imprescindível no emprego?). Sugiro que vejas isto a sério porque podes vir a arrepender-te e a culpar-te de não o teres feito. Quanto mais cedo melhor! Tenho andado a pensar no pedido de autorização para o casamento. Quero fazê-lo, se possível, ainda esta semana. A dificuldade é a seguinte: pedindo autorização é necessário tratar de várias coisas (não sei bem quais, mas calculo) que exigem esforço e dinheiro. Esforço não é comigo... Dinheiro, ainda menos: nem mesmo recebi ainda o livro para começar a tradução. Estava a contar que os meus Pais me valessem, mas não sei quando regressam, embora suponha que não vai de- morar muito mais. Ora a tua Mana vem neste mês... Enfim, não sei como me desembrulhar. Entretanto, cumprindo as tuas ordens, vou requerer autorização e ver se consigo tirar o cartão de identidade, para o que já há meses estou autorizado. Se cá vieres neste fim de semana, já devo ter novidades a dar-te. Como tu és "cruelzinha" para a nova colega. Sim, senhora. Andas agora impante e ainda fazes pouco de... ti própria. É saudável, mas tinhas a obrigação de dar a mão à palmatória, de dizer que eu tinha toda a razão, etc, etc e tal. O que verda- Fl. 1v deiramente importa é que conseguiste vencer uma situação, afinal facilmente, e que tal facto pode ser muito importante se nele reflectires e o ganhares como ex- periência consciente. Podem voltar, nesta ou naquela curva mais dura, os desânimos ou os medos de não seres capaz. Mas aprendeste a como reagir em tais circunstâncias dificeis, a manter nesses momentos a certeza de que há uma saida, de que também o desespero é momentâneo, de que o tempo joga a teu favor. Pode-se viver muito tempo longe dos aspectos essenciais da vida e, de repente, ver-se reduzido à solidão, à espantosa amargura de não saber o que é feito de quem se ama, ao sofrimento mais duro e à hipótese da própria morte. A minha experiência é que é salutar, porque vemos exactamente e sem mentiras e sem escapatórias e sem disfarces;, o pouco que é essencial em cada um de nós; a profundidade visceral de certos afectos (mesmo algum tempo distorcidos e perturbados); o que, de facto, temos pena de perder e deixar; e o quanto tantas e tantas coisas são irrisórias, pobres, acidentais. Ainda há dias li um conto extraordinário de Hemingway (As Neves de Kilimanjaro) que conse- gue precizamente transmitir tudo isto. Á proposito: aonde é que foste reler o Adeus bem português? Não acredito que soubesses de cor... O que é que reco- meçaste a ler? Essa é uma noticia de arromba e bastante animadora... A serio, é bom, é um reganhar de interesse pelas coisas boas. Faz-me crer que não estará longe o dia em que dispensarás o luxo do Dr [N]. Francamente, como é que te sentes de saude? Do sistema nervoso, sim, mas também do resto? Quando é que olharás o problema de frente? Voltando a livros: hás-de me dizer como é que se chama esse livro sobre pintura, autor, etc. E outros que por aí vás arranjando. A tua amiga [N] não tem nada de recente que empreste? Ou só é tua amiga e muito pouco, ou nada, minha? Mas não tragas antes de me dizer. Trazes-me os títulos e autores e eu depois digo-te se quero ou não. As nossas queridas catraias? Escrevi à [N], além d outras coisas, a referir a hipótese da ida da [N] passar com eles o tal mês de férias. Vamos a ver o que me responde. Enviei-lhe um desenho da [N], que por engano me mandaste, pois tinha escrito [N]. Porque não lho mandaste? É o mais colorido. Os outros são figuras e menos vivos. Tens que pedir à [N] e à [N] que façam flores e barcos, etc - coisas com cores porque eu gosto das cores que combinam. Gosto de tudo que é delas. Reconheço que atinjo um estado apatetado, incritico e acritico. Fazem-me falta. Como tu. Não consigo compreender como é possível pensar-se que o amor aos filhos, diminui o amor entre os pais. Eu julgo que, pelo contrário, ambos se continuam e aprofundam. Misturam-se intimamente e enriquecem-se. Ao olhar a [N] e a [N], ao amá-las, vejo-te também a ti e amo-te também a ti, mas pequenina. Sei que nos prolongam a ambos e desejo que se multipliquem também ainda para te reencon- trar. Isto é assim. E os anos da nossa [N], já pensaste neles? Por falar em anos, não quero esquecer-me de te dizer, ou lembrar, que a [N] faz anos no dia 3. Manda-lhe um telegrama, e deita para trás das costas o resto. Em postal ou em carta, com ou sem remetente, escreve! Confiante e natural e expontânea, escreve! Beija-me muito as nossas filhas. Que lhes escrevo no sabado. Que as amo muito e brinco com elas. Abraços a tua mMãe. Beijo-te com muito amor. [N] P.S.PS: Óculos? Fl. [1]r P.S- Como compreendes, faz-me muita falta a caneta que já tens. Peço-te muito que ma tragas e mais te peço que não a percas ou estragues ou qualquer outra coisa. Por favor, não esqueças este pedido [N] Contexto Prisão Palavras Chave Tipo: expressão de amor Suporte Material Suporte:
uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Créditos Transcrição: Leonor Tavares Discorda da nossa leitura? Por favor escreva-nos: cardsclul@gmail.com |
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