1970. Carta de amor entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa]. FLY1039

FLY1039
Carta de amor entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa].

Data
01/07/1970

Referência Arquivística
N.A.
Arquivo Privado, Arquivo Privado, FLY1039, Fólios [1]r-v

Resumo
O autor mostra-se enternecido e contente com as notícias que recebeu da mulher. Revela como sente, na prisão, que mesmo assim acompanha a vida da destinatária e das filhas de ambos. Dá conselhos sobre a forma como a destinatária deve agir em relação a uma série de problemas familiares. Comenta uma leitura de Hemingway e fala de livros que quer vir a ler. Termina com o pedido dos seus óculos e de uma caneta.

Local
Peniche

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Autor | Destinatário | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Peniche

1. Julho. 1970

Meu Amor:

Estou com saudades tuas, pronto.

Deliciaste-me com o teu postal. Não consegui resistir ao encanto (só tu!) de te ver a escrever dois postais, em vez d uma
carta, porque a carta exige (!!?) rascunho, e ainda a parecer que aproveitavas naturalmente, com grande expontaneidade, vários mo-
mentos do dia para ires escrevendo. Nem remetente puzeste e eu gostei. Sobretudo porque te senti confiante, alegre, "desini-
bida e senhora de ti". Quase não resisti à tentação de te enviar um telegrama e exprimir tudo isto.

O proprio facto de saber que ias à praia com as nossas miudas e a nossa Mãe, me consolou do desgosto de te não
ver. Li no Século Ilustrado da semana passada as andanças e os atropelos inevitáveis para ir às praias dos arredores de Lisboa; vai daí,
puz-me no domingo a imaginar-vos aos encontrões, quase desfeitas, felizes, queimadas, exaustas. De certo modo, fui também e, além
disso vinguei-me... É claro que não consegui deixar de me preocupar com a idade da tua Mãe, a rabiteza das miudas, etc.

Só depois preocupado porque a [N] disse que te telefonara e lhe disseras que a tua Mãe estava doente. Ainda
quero supor que tivesse sido apenas uma desculpa, mas não consigo convencer-me. Preocupado com a tua Mãe e triste ao
ver ir por água a baixo o vosso passeio, a alegria das miudas, a satisfação da tua Mãe e a tua.

Não sei o que tens previsto em relação à saude da tua Mãe. Talvez pensando um bocado não fosse dificil concretizar
a sua ida a um médico especialista competente e indicádo. Não há problemas, penso eu, em arranjar apresentação para um médico, pelo
meu Pai, pelo [N], pelo teu cunhado, pela tua amiga [N], etc. Também é fácil pedir à [N] ou a qualquer outra pessoa (à
tão tua amiga [N], por ex) para ficarem uma tarde com as miudas, se for esse o problema; a ti também não deve ser impossí-
vel faltar uma tarde para ires com a tua Mãe (ou já és imprescindível no emprego?). Sugiro que vejas isto a sério porque podes vir
a arrepender-te e a culpar-te de não o teres feito. Quanto mais cedo melhor!

Tenho andado a pensar no pedido de autorização para o casamento. Quero fazê-lo, se possível, ainda esta
semana. A dificuldade é a seguinte: pedindo autorização é necessário tratar de várias coisas (não sei bem quais, mas calculo) que
exigem esforço e dinheiro. Esforço não é comigo... Dinheiro, ainda menos: nem mesmo recebi ainda o livro para começar
a tradução. Estava a contar que os meus Pais me valessem, mas não sei quando regressam, embora suponha que não vai de-
morar muito mais. Ora a tua Mana vem neste mês... Enfim, não sei como me desembrulhar. Entretanto, cumprindo as
tuas ordens, vou requerer autorização e ver se consigo tirar o cartão de identidade, para o que já há meses estou autorizado.
Se cá vieres neste fim de semana, já devo ter novidades a dar-te.
Como tu és "cruelzinha" para a nova colega. Sim, senhora. Andas agora impante e ainda fazes pouco de... ti
própria. É saudável, mas tinhas a obrigação de dar a mão à palmatória, de dizer que eu tinha toda a razão, etc, etc e tal. O que verda-

Fl. 1v
deiramente importa é que conseguiste vencer uma situação, afinal facilmente, e que tal facto pode ser muito importante se nele reflectires e o ganhares como ex-
periência consciente. Podem voltar, nesta ou naquela curva mais dura, os desânimos ou os medos de não seres capaz. Mas aprendeste a como reagir em
tais circunstâncias dificeis, a manter nesses momentos a certeza de que há uma saida, de que também o desespero é momentâneo, de que o tempo joga
a teu favor. Pode-se viver muito tempo longe dos aspectos essenciais da vida e, de repente, ver-se reduzido à solidão, à espantosa amargura
de não saber o que é feito de quem se ama, ao sofrimento mais duro e à hipótese da própria morte. A minha experiência é que é salutar,
porque vemos exactamente e sem mentiras e sem escapatórias e sem disfarces;, o pouco que é essencial em cada um de nós; a profundidade visceral
de certos afectos (mesmo algum tempo distorcidos e perturbados); o que, de facto, temos pena de perder e deixar; e o quanto tantas e
tantas coisas são irrisórias, pobres, acidentais. Ainda há dias li um conto extraordinário de Hemingway (As Neves de Kilimanjaro) que conse-
gue precizamente transmitir tudo isto.

Á proposito: aonde é que foste reler o Adeus bem português? Não acredito que soubesses de cor... O que é que reco-
meçaste a ler? Essa é uma noticia de arromba e bastante animadora... A serio, é bom, é um reganhar de interesse pelas coisas boas.
Faz-me crer que não estará longe o dia em que dispensarás o luxo do Dr [N]. Francamente, como é que te sentes de saude?
Do sistema nervoso, sim, mas também do resto? Quando é que olharás o problema de frente?

Voltando a livros: hás-de me dizer como é que se chama esse livro sobre pintura, autor, etc. E outros que por aí
vás arranjando. A tua amiga [N] não tem nada de recente que empreste? Ou só é tua amiga e muito pouco, ou nada, minha?
Mas não tragas antes de me dizer. Trazes-me os títulos e autores e eu depois digo-te se quero ou não.

As nossas queridas catraias? Escrevi à [N], além d outras coisas, a referir a hipótese da ida da [N] passar
com eles o tal mês de férias. Vamos a ver o que me responde. Enviei-lhe um desenho da [N], que por engano me mandaste,
pois tinha escrito [N]. Porque não lho mandaste? É o mais colorido. Os outros são figuras e menos vivos. Tens que pedir à
[N] e à [N] que façam flores e barcos, etc - coisas com cores porque eu gosto das cores que combinam. Gosto de tudo
que é delas. Reconheço que atinjo um estado apatetado, incritico e acritico. Fazem-me falta. Como tu. Não consigo compreender
como é possível pensar-se que o amor aos filhos, diminui o amor entre os pais. Eu julgo que, pelo contrário, ambos se continuam
e aprofundam. Misturam-se intimamente e enriquecem-se. Ao olhar a [N] e a [N], ao amá-las, vejo-te também a ti e
amo-te também a ti, mas pequenina. Sei que nos prolongam a ambos e desejo que se multipliquem também ainda para te reencon-
trar. Isto é assim. E os anos da nossa [N], já pensaste neles?

Por falar em anos, não quero esquecer-me de te dizer, ou lembrar, que a [N] faz anos no dia 3. Manda-lhe
um telegrama, e deita para trás das costas o resto.

Em postal ou em carta, com ou sem remetente, escreve! Confiante e natural e expontânea, escreve!

Beija-me muito as nossas filhas. Que lhes escrevo no sabado. Que as amo muito e brinco com elas.

Abraços a tua mMãe. Beijo-te com muito amor.

[N]

P.S.
PS: Óculos?
Fl. [1]r
P.S- Como compreendes, faz-me muita falta a caneta que já tens. Peço-te
muito que ma tragas
e mais te peço que não a percas ou estragues ou qualquer
outra coisa. Por favor, não esqueças este pedido
[N]



Contexto
Prisão



Palavras Chave

Tipo: expressão de amor
História: prisão
Sociologia: família, comunicação social, saúde, cultura, condições económicas, educação, justiça




Suporte Material

Suporte: uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Medidas: 275mm × 211mm
Mancha Gráfica: sem linhas em branco entre a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Leonor Tavares
Revisão: Mariana Gomes
Codificação DALF: Leonor Tavares
Contextualização: Ángel Rodríguez Gallardo




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