1971. Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa]. De Peniche para [Lisboa]. FLY2024

FLY2024
Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa]. De Peniche para [Lisboa].

Data
06/04/1971

Referência Arquivística
N.A.
Arquivo Privado, Arquivo Privado, FLY2024, Fólios [1]r-v

Resumo
O autor mostra-se aborrecido com a destinatária por ela lhe ter escondido notícias sobre a saúde das filhas. Ordena-lhe que passe a deixá-lo envolver-se mais como pai. Parte para um ensaio em que menciona Eça e Simone de Beauvoir. Em termos de leituras, comenta também Pessoa e Guimarães Rosa. Depois de comentar a vontade que a mulher tem de voltar aos estudos, termina com um pedido sobre as encomendas que quer receber na prisão.

Local
Peniche

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Autor | Destinatário | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Fl. [1]r

Peniche,

6. Abril. 1971

[N]:

Como está a [N]? Continua bem disposta e sem febre? Quais foram os resultados das análises à urina e à zaragatoa que deviam ter sido feitas,
sem falta, na 2a feira?
É claro que continuo apreensivo e à espera de todas as notícias, boas ou más. Calculas as saudades que tenho das miudas (cal-
culas [N]), e da [N] em especial por estar doente, mas não a tragas cá sem estar curada ou, pelo menos, sem explícita autorização do médico.

Diz à [N], todos os dias, que eu lhe dou milhões de beijos. A [N] escreveu-me um postal: que está a passar as férias da Pascoa no
Porto com a [N], que está boa e brinca muito. Escrevi-lhe tambem. Minhas queridas, minhas queridas!

É realmente importante que não embarques em parvoeiras cabotinas de que dar más notícias é sadismo. (O que se entenderá, afinal, por
sadismo?). Pode-se sempre - a todos os níveis e em todas as circunstâncias - invocar os mais diversos pretextos para distorcer ou desfigurar a realidade,
para, deste ou daquele modo, justificar a insensibilidade ou o egoísmo ou a cobardia ou a mentira ou a deslealdade. Pode-se até chamar-lhes outros
nomes, mas isso não altera nada. Essa, a desculpa dum "paternalismo bem-intencionado", usa-se muito, em variadas coisas: nem original é! Com
que base pode alguém arrogar-se o direito "superior" de impedir que eu conheça exactamente o que se passa com as minhas filhas, no momento exacto
em que se passa? A não ser um "deusinho" enfatuado a exibir frases bonitas. Estar preso não é o mesmo que ser menor ou irresponsável ou in-
capaz ou impotente ou, mais ou menos, morto, nem parvo. Pelo contrário! Eu, por mim, já sou muito crescido para começar agora (porque seria agora
que começava) a ter esse medozinho de viver a vida, seja qual fôr. Oh! Tartufos vestidos de misericórdia! Não há dúvida, [N], quotidianamente,
nas mais pequenas coisas (em nós também) se verifica que a consciência alienada e alienante dos homens transmuta em grandes palavras os baixos
jogos: o desprezo pelos outros disfarça-se de beneficiência caridosa. E fica-se contente porque se é Bom. Oh! Conselheiros Acácios como tendes
florido neste país de romances côr-de-rosa e de tão parca auto-lucidez!

Duma ou doutra forma, eu no pleno gozo das minhas faculdades mentais e da minha vontade, pela [D] vez preso, maior de quarenta
anos, com uma biografia suficientemente, ou até excessivamente, [N], inteiramente lúcido, declaro terminantemente: a) todos, mas todos os problemas
e incidentes ou acidentes ou seja o que for, respeitantes às minhas filhas, e em geral, à minha vida, devem-me ser comunicadas com a maior brevidade, sem
qualquer hesitação; b) fazer ou defender o contrário disto, é explorar, aproveitar e beneficiar do facto de eu estar preso: tal atitude não é, diga-
mos assim, nem bonita nem nobre; c) ninguem pode, porque ninguém deve, tentar pôr em causa a validade desta decisão que só a mim me cabe.

Se quiseres, assino e reconhece-se em notário. Importa, e não pouco, que estas coisas fiquem perfeita e definitivamente claras entre
nós, sem margens para perplexidades tuas: não quero que te "esgotes" em dilemas tão tolos. Toda esta tirada, mesmo irónica, pode parecer irri-
tada. É-o, mas não muito. Lamento sim ter de concluir que não consegui até hoje dar-te um conhecimento de mim que te dispensasse de
consultas "amplas" sobre matéria tão pessoal, tão séria, tão óbvia, tão insusceptível de conversinhas amenas. Mea culpa!

Digo "mea culpa" a sério. As pessoas conhecem-se mal umas às outras. Com frequência, conhecem de nós muito bem certas facetas, às
vezes secundárias. De repente descobrem um outro conjunto de aspectos e ficam surpreendidas, umas vezes porque são ou parecem contraditórios,
outras porque se lhes afiguram irreconciliáveis, outras ainda porque abrem a porta duma personalidade insuspeitada. Nem sempre conseguem
Fl. [1]v
abarcar numa síntese o que irrompe fora do esquemazinho; o pior é que desistam, ficando no superficial ou, agarrados a um angulozinho estreito, arre-
dem os outros como inoportunos ou miríficos. O mal (aqui começa a "mea culpa") é desprezarmos o facto, consentirmo-lo sem luta. É isto para te
dizer que me conheces mal? É, sim. Mas é também para te "exigir" um esforço para quebrares ideias feitas, fáceis, simples, pobres. Falsas? Não: uni-
laterais, quase diria infantis. E para reconhecer, em parte, que to permiti, quanto mais não fosse por omissão.

Tudo isto, aliás, sejamos francos!, esconde mal a outra face da moeda: o sentimento (de decepção? de frustração? de impaciência? de incompreensão?)
com que verifico sempre a tua aparente incapacidade (fuga? pose teatral? insensibilidade? desprezo? cobardia?) a conversar comigo (cavaquear, digamos) sobre
alguns problemas que te equaciono. Às vezes, dir-se-ia (cruzes!) vacuidde. (Só a mim é que isto sucede!). O pior é que não é - eu sei-o. É preciso, [N],
libertares-te d uma tal reacção provinciana e infantil. É tempo, também nestas coisas, de assumires a maioridade que é a tua. Não tens, afinal, a atitude
franca, espontânea, de acordo com a personalidade global que vens revelando na coragem e no acerto com que resolves os problemas da tua vida: o emprego,
a casa, as filhas, etc, etc. Nem mesmo está de acordo com essa sinceridade de que tanto te ufanas... - a não ser que tenhas na manga qualquer dessas
boas desculpas acacianas atrás referidas! Temos que conversar mais quando cá vieres. Pede à tua Irmã que te aconselhe, porque, embora tu sejas ,
pouco influenciável, és receptiva ao que te dizem, e ela te ajudará a ver claro e justo. É importante ver claro e justo.

Nem me disseste sobre que era a tese da tua Irmã. Estou interessado em saber em que bolandas se vai meter: e às vezes, sabe-se lá!, talvez
a possa "ajudar". É tema de interesse? Tenho pensado no teu projecto de estudos, embora receie que não passe de "mania": tu não és muito persisten-
te, manda a verdade que se diga. Não te deixes esmagar pelas dificuldades que serão reais e muitas: bases, hábitos de estudo, saude, tempo (quando se
quer arranja-se realmente, não é?), etc. Mas valerá a pena encarares a hipótese com cuidado. Românicas? E porque não Historicas? (A propósito: não
vás em lérias de que tens tido "muita sorte" no emprego: o que é relevante é o teu esforço, o teu trabalho, a tua capacidade de adaptação)

Recomendo de novo a leitura desse livrinho "Uma mente serena", da S Beauvoir. A ti e à [N]. Coloca uma situação - a morte - em termos tão
frontais, tão despidos de efabulação, tão fotográficos, que se pressente um esforço para se libertar do choque provocado pela morte da mãe, para a racio-
nalizar, sem escapatórias, sem compensações alienantes. E, no entanto, não esmaga, não deprime, abre uma visão serena. É uma centena de páginas
excepcionais. Vou-te mandar o Pessoa e um ou dois outros livros (guarda-mos com o outro que em tempos te mandei), para poder receber estes dois de Gui-
marães Rosa. Estou muito interessado e não só eu. Até me perguntavam onde é que a tua Irmã o conseguiu comprar, porque quiseram fazê-lo
e não conseguiram: vê se sabes. E tu que tens lido? Que tens visto? Que tens feito?

O emprego como vai? O curso de estenografia? A tua saude? Arranja tempo e escreve, abre-te com à vontade!

Tens que começar a pensar na ida, no próximo ano, das miudas para o tal colégio em que falaste há tempos. Com o teu futuro horário de tra-
balho, a saude da tua Mãe, etc, etc temos que repensar com cuidado tudo isto. Inclusivé encarar outras soluções. Vai pensando e formando ideias.

Se calhar ainda nos vemos antes de receberes esta carta. Hoje veio nos jornais a confirmação do feriado de 5a e 2a e tu referiste a intenção
de cá vir. Ou, de qualquer modo, quero-me convencer que virás. Mas se não nos virmos: Boa Pascoa para todos vós!

Pouco espaço fica para falar de mim. Ontem e hoje, chuva e frio. Saude razoável. Em suma: cá estou.

Abraços à tua Mãe e à [N]. Como se chama a bebé da [N]?

Beijo-te

[N]

P.S.
P.S. - Peço-te: não gastes dinheiro em charcuterias. Se temes (ridiculo!) nada trazer, traz coisas feitas leves ou preferivelmente: café (o de outro dia era muito bom),
queijo, açucar, fruta. Isto não quer dizer menor agradecimento pelo que trouxeste. - JÁ RECEBESTE O CASACO?
[N]
Fl. [1]r
OS DESENHOS QUE TINHAS PARA MIM DAS MIÚDAS?
PS: lembro-te que meu [N] faz anos em 9 de Abril, sexta feira.
Lembro-te o pagamento do livro à [N] (é aborrecido se te esqueceste outra vez)
Peço-te que, se puderes, me tragas a minha cigarreira de prata.
Adeus
[N]



Contexto
Prisão



Palavras Chave

Tipo: ordem
História: prisão
Sociologia: família, saúde, educação, cultura




Suporte Material

Suporte: uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche.
Medidas: 275mm × 211mm
Mancha Gráfica: sem linhas em branco entre a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Mariana Gomes
Revisão: Leonor Tavares
Codificação DALF: Mariana Gomes
Contextualização: Ángel Rodríguez Gallardo




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