1971. Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa]. FLY2027

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Carta familiar entre marido e mulher. De Peniche para [Lisboa].

Data
25/05/1971

Referência Arquivística
N.A.
Arquivo Privado, Arquivo Privado, FLY2027, Fólios [1]r-v

Resumo
O autor, depois de mencionar uma carta biográfica que escreveu mas não mandou, pede à mulher que deixe uma das filhas, eventualmente as duas, irem passar as férias de verão com a família paterna. Comenta a difícil relação da mulher com a família por afinidade e dá-lhe conselhos sobre a conduta que julga ser mais apropriada. Menciona, no final, livros de Guimarães Rosa que retém mas ainda não leu.

Local
Peniche

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Autor | Destinatário | Contexto | Palavras Chave | Suporte Material | Créditos


Texto

Fl. [1]r

Peniche

, 25. Maio. 1971

[N]:

Esta é uma segunda carta. A primeira tenho-a para ali. Surpreendi-me a falar-te desse Outono de 1963, d uma casa vazia e fechada
onde me vejo a escrever em letra miudinha, etc, etc. não sei bem como - e não gosto de reler-me - encontrei-me a descrever-te as pri-
meiras horas da manhã deste dia 25 de Maio, mas em 1969; de como as coisas se foram reflectindo na minha cabeça, com uma lucidez,
uma calma e também uma coragem de que no próprio momento se vai tendo consciência e espanta; de como as coisas se sucederam; leve-
mente teatrais, às vezes sarcásticas, às vezes violentas, um pouco ridículas como todas estas coisas são, sempre muito tensas, até que - na posi-
ção mais incómoda, com espanto geral de todos os comparsas, no auge da tragédia (1o acto) - adormeci profundamente como um justo.
Depois tombara na indesculpável patetice de te contar um pouco destes 730 dias... Reli-me. Ouvi-te a falar-me de retórica dos
disfarces, da autenticidade. Finquei o olhar neste espaço fechado que me cerca e fui concluindo que era forçoso dar-te razão,
que nada daquilo te poderia interessar senão muito literariamente (coisa que não sou) e que se impunha para nós ambos escrever-te
uma outra carta. É esta.

Escrevo hoje à [N] e à [N]. Dou-lhes conta do que entre nós ficou combinado: a ida da [N] passar as férias grandes
com eles e a permanência posterior, se nenhuma reacção da miudinha o desaconselhasse; ter-se-ia em conta que pelo próprio facto de
serem férias poderiam não surgir logo as reacções, mas só depois. Podes estar segura, [N], que lhes coloquei abertamente os teus receios,
as tuas preocupações: mais, que os fiz meus. Podes confiar, [N], na isenção, na lealdade, no escrúpulo, na responsabili-
dade muito pesada e tambem na inesgotável gratidão para contigo.

Peço à [N] que não se preocupe agora com os outros problemas que lhe colocaste. Ela precisa agora de repouso, de
serenidade, d um certo egoísmo até. Tambem eu não quereria que o [N] se metesse a cumprir um "fado" que não lhe pertence.
Ir-se-á vendo o que é possível e aguentando.

Não sei como encaras a hipotese da nossa [N] ir também passar - todas ou parte ou o que tu entendesses - das fé-
rias grandes à [N]. (Repara: não sei se será possivel, não falei ainda a ninguém, embora toque no assunto à [N]). Faria bem
à [N], daria algum descanso à tua Mãe e a ti própria, tanto mais que virão o [N] e o [N]. Pensa nisto sem preconceitos,
à vontade, e diz-me com "autenticidade" se estarias de acordo ou não. Eu trataria depois, ou não, da ida.

O meu Pai disse-me que tencionava ir, no início de Junho, a Lisboa, ver a [N], ver as nossas filhas e, provavelmente,
falar contigo. Talvez sobretudo isto. Procurarei poupar-te e evitá-lo, mas não sei. É-me impossível - como sabes - estar ao vosso
lado para te ajudar e para o ajudar também. Sê-lhe muito franca e "autêntica", embora te peça que não esqueças os seus
78 anos; mas é um homem cheio de experiência humana a quem, ainda que com tacto, deves falar claro, muito claro. Farei o
que puder para que ele próprio te auxilie, te apoie, te compreenda. Vê lá se, entretanto, consegues receber os tónicos e a
Fl. [1]v
carta que te escreveu (aliás com dinheiro para as miudas); eu insisti muito nos tónicos, ele próprio foi procurar a [N] para que tos levasse,
etc, etc. Sei como ficaria chocado se ainda os não tivesses em teu poder. Julgo que será facil estar com a [N] e resolver
os problemas que há.

A análise da minha [N]? E os dentes da [N]: agora como vais resolver isso? Levaste-lhes as bolachas ou
comeste-as todas? Fala-me das miudas, conta-me o que houver, tudo. Não te é difícil; o difícil, julgo eu, será saberes que
estou aqui, as semanas a passar e eu sem notícas das minhas catrainhas. Eu ia mandar-lhes uns postais, mas já não posso hoje;
mando no sábado: lê-lhos, por favor, sem cortes...

Tenho meditado não pouco na hipótese - posta por ti com sensatas reservas e cautela - de estadia cá, durante as férias, em meados
de Junho. Hesitei - e ainda temo; tu compreenderás que tambem eu não gosto de confusões - dizer-te que me agradaria muito: exactamente porque me
permitiria um convívio regular, quase diário, durante algum tempo com as nossas filhas, o que há dois longos anos não acontece e que,
como dizê-lo?, não sabemos se, nos anos mais próximos, voltará a possibilitar-se. Tu decidirás. Que, no entanto, não sejam obstáculo quais-
quer considerações económicas
. Estou certo de poder garantir-te toda a contribuição material necessária - o que é perfeitamente legitimo e justi-
ficado, dado que seria eu e as nossas filhas os principais beneficiados. Diz-me o que resolveres com algum tempo.

Tenho aqui os livros do Guimarães Rosa, mas nem sequer ainda os pude receber todos. Faz-te diferença, a ti ou à tua irmã?
Se fôr preciso, diz-mo que eu mando-tos mesmo que pelo correio.

Duvidaste aqui, a certa altura, do desinteresse da minha posição quando vieste para Lisboa - o que nem permitiu mostrar-te
que sempre estivera consciente de várias opções previsíveis por ela facilitadas, mas que se sobrepuzera a tudo a solidariedade e o respeito
para contigo. Insinuaste depois que eu não estaria hoje a compreender ou até a aperceber-me da ajuda que também agora necessitas. Não
quero fazer literatura, nem quero mesmo afirmar muito mais do que então te respondi. Não sei, não sei mesmo, o que querias dizer. Não sou
advinho, nem estou em situação muito própícia para me dar conta das coisas, para isto e para aquilo. E tu não facilitas muito -
- não é verdade? De qualquer modo: não tens nenhuma, mas mesmo nenhuma, razão. Admito que não esteja a aperceber-me disto ou
daquilo, e, só nesses termos e medida, admito menor compreensão, ou, mais exactamente, desconhecimento, de que não posso
nem devo culpar-me. Porque a disposição e a capacidade e a deliberação, e também a sensibilidade, de compreensão e de
ajuda são com rigor os mesmos. E que fique claro - e tu sabe-lo: enormemente grandes. Sê justa!

Beija-me muito e com muitas saudades a [N] e a [N]. Diz-lhes que eu lhes chamo nomes muito carinhosos
e lhes dou - nesta distância toda - muito amor, muita ternura e muito mimo. Diz à [N] que me escreva.

Muitos abraços e muitos beijos e carinhosos para ambas , e para ti

[N]

P.S.
PS. - Não te "aflijas" com a carta de 1963 que "indevidamente" retens... Não tem nada a ver com os 30 anos. Eu escrevera outras - a ti tam-
bém - e tenciono voltar a escrever mais. Depois conto-te qual é a "técnica"...
[N]



Contexto
Prisão



Palavras Chave

Tipo: pedido
Sociologia: família, saúde, condições económicas, cultura




Suporte Material

Suporte: uma folha de papel de carta pautado de 30 linhas escrita em ambas as faces; carimbo da censura da Cadeia do Forte de Peniche; há uma mancha de água que atravessa da quarta à oitava linha de texto.
Medidas: 275mm × 211mm
Mancha Gráfica: sem linhas em branco entre a fórmula de endereço e o início do texto.




Créditos

Transcrição: Mariana Gomes
Codificação DALF: Mariana Gomes




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